
(Foto oferecida pela Dulce Lázaro para avivar a minha memória)
No final entregaram os pratos quase lambidos, agradeceram e bateram na porta ao lado da nossa vizinha . Não sei o que lhe pediram. O que sei, e que nos fez na altura muita confusão, é que a vizinha mandou-os entrar e dali nunca mais saíram ficando a Pobrezinha a trabalhar dentro de casa e o Pobrezinho a trabalhar fora. Acabámos por nos habituar aos novos vizinhos, vendo as crianças com melhor aspecto e até a frequentarem a escola primária na zona. Mas passados poucos meses, numa bonita tarde de Primavera em que brincava no quintal, percebi uma grande agitação na minha casa e também na dos vizinhos que andavam a correr e a cochichar . Levantei-me precipitadamente para ver o que se passava e percebi palavras como parteira… bebé... e outras que na altura não me davam indicações nenhumas. A minha mãe entrou na cozinha a correr para pôr panelas com água ao lume que na altura eram aquecidas em fogareiros a petróleo e quando entrou na casa da vizinha com a panela de água quente na mão, eu entrei com ela e vi-me num pequeno quarto quase sem luz, onde estava uma cama de casal forrada com folhas de jornais e em cima deles a Pobrezinha de pernas escancaradas, sem cuecas e a gritar. Só então me apercebi que ia nascer o bebé que ela trazia na barriga. A excitação foi tão grande que me quis posicionar nos primeiros lugares da plateia quase competindo com uma mulher que não conhecia mas que percebi pouco depois tratar-se da tal parteira chamada à pressa. A Pobrezinha no intervalo dos gritos reparou na minha presença e certamente na minha cara estupidificada com tudo aquilo e gritou: - Não quero que a Belinha veja! Não quero que a Belinha veja!!! E alguém me empurrou do quarto e me fechou a porta na cara. Mas depois deste aperitivo, já não era possível verem-se livres de mim e, esperando pela oportunidade em que alguém entrasse com mais água ou mais jornais, consegui entrar de novo tendo o cuidado de ficar discretamente encolhida a um canto. Os gritos aumentaram de intensidade e de frequência, ao mesmo tempo que se ouviam os sons espalhafatosos dos puns que nem sequer me deram vontade de rir ao ver que empurravam bocados de cocó castanho que se espalhavam pelos jornais misturando-se com líquidos cor de sangue que borbotavam do pipi com umas dimensões que me deixaram estarrecida... O pequeno quarto cheio de mulherio estava irrespirável de bafos e de cheiros fortes. Após o esforço de um grito mais prolongado vi aparecer uma bola preta na “boca do corpo”, expressão que tinha acabado de aprender ao ouvir uma das vizinhas a falar cerimoniosamente com a parteira. Esta segurou na tal bola e virou-a mudando de posição e depois de mais uns dois ou três berros da mulher, saiu disparada agarrada a um corpo minúsculo que ficou em cima dos jornais praticamente imóvel mas preso por uma tripa ao interior da mãe. Entretanto começou a agitar-se e de repente começou a berrar aflitivamente e todas as mulheres disseram: Bendito seja Deus! A parteira segurou na tal tripa e disse que ainda pulsava e esperou mais uns segundos até achar que o momento já era propício para atar com uma linha que alguém lhe entregou e a seguir cortou com a tesoura da casa, separando a mãe do filho. Todas as mulheres presentes, incluindo eu, seguiam os seus movimentos e explicações com uma atenção desmedida... Depois começou a puxar a tripa devagar até sair um bocado de carne e ali em cima dos jornais abriu-a (lembro-me de ter achado a placenta parecida com uma flor) e disse: Está tudo bem! Duas mulheres lavaram logo o bebé numa tina com água morna, outras enrolaram aqueles jornais cheios de sangue e de fezes e outras trataram de meter a placenta no mesmo balde do lixo. Depois da cama arranjada, a Pobrezinha lavada e vestida com outra camisa e do bebé limpo e agasalhado é que chamaram o marido que entrou envergonhado por estar no meio de tanta mulher e sem saber o que fazer ou dizer. Olhou atarantado para o bebé e a Pobrezinha disse-lhe: É um rapaz! E ele: Ainda bem. O espectáculo daquele nascimento nunca mais me saiu da memória. Muitos anos depois tive a felicidade de ter os meus filhos também. Nasceram nas maternidades do Hospital Particular e do Hospital da Cruz Vermelha em Lisboa, e tanto num caso como noutro, acompanhada pela boa disposição do médico ginecologista que seguiu a gravidez desde o primeiro momento e também pela presença do meu marido que esteve sempre ao meu lado. Nasceram em salas de parto vulgares nos hospitais, não existindo ainda os tais quartos especiais para fazer a mãe esquecer que está num hospital e realmente esqueci-me, completamente entregue áquele momento único. Tive a sorte de serem partos rápidos, normalíssimos e sem uma coisa chamada Epidural. Na altura os bebés não ficavam juntos com a mãe logo após o nascimento. Só os traziam na altura das mamadas podendo a mãe ficar a descansar durante esse curto intervalo. Hoje esta prática foi posta de lado e entende-se que os bébés devem ficar ao lado da mãe desde o primeiro momento para se criarem laços mais fortes entre os dois. Há agora uma corrente defensora daquilo a que chamam de “parto humanizado” (expressão que considero infeliz pela brutalidade com que lança os outros partos para a nebulosidade do desumano) em que acreditam que os ambientes hospitalares e as suas práticas como aqueles onde tive os meus filhos, dão origem a vários traumas e consequentemente a relações dificeis entre mãe e filho no futuro. Mas felizmente connosco tal não aconteceu. Quem nos conhece, sabe que tenho com os meus dois filhos uma relação excelente que nos enche de orgulho, a mim e ao pai. Por isso sou contra a tentativa de convencer as mães para os imensos riscos nas suas opções. Acho que a mãe deve ter acompanhamento médico durante todo o processo da gravidez e que se deve informar devidamente sobre as várias propostas para o acto do nascimento. Mas só ela saberá qual a situação que lhe dará menos preocupações. Por isso pode escolher ter o filho em maternidade hospitalar, com ou sem quarto especial e com o apoio de uma equipa médica ou de o ter em casa assistida ou não por uma parteira experiente. Cada mãe é que sabe em que situação se sentirá mais calma, confortável, acarinhada num momento tão importante como esse em que a Natureza vai permitir que aquele ser especial que vive crescendo no seu interior se liberte para fazer finalmente parte de um mundo que o espera, precisa e conta com ele