2008-05-17

Saber ser velho

Em Março de 2007, escrevemos um pequeno texto fazendo referência à vida e obra de Carlos Mar Bettencourt Faria, cientista português assassinado em Angola em 4/7/76. A partir daí fomos recebendo alguns contactos de pessoas que também o conheceram e que gostavam de partilhar essas memórias. Um deles foi o Mário Portugal, seu irmão, que ainda hoje comunica connosco diariamente dando origem a uma bonita amizade.
O Mário é rádio amador veterano e escreve com frequência para a revista QSP-Revista de Rádio e Comunicações sobre os assuntos mais diversos e inesperados.
Os seus conhecimentos são vastíssimos e é difícil pôr-lhe alguma questão que fique sem resposta de imediato ou a curto-prazo.
É uma pessoa muito activa, alegre, solícita e sempre atenta às descobertas científicas que se fazem por esse mundo fora.
Tendo passado parte da sua juventude internado num sanatório do Caramulo com uma grave doença pulmonar de diagnóstico tão reservado que indiciava uma morte prematura, conseguiu impor-se à doença fazendo uma vida normal até hoje.
Também se interessa por medicina e é abordado bastas vezes por vizinhos e amigos para lhes aplicar uma dose de ondas curtas para alívio rápido nos problemas de artroses nas suas fases mais dolorosas.
É evidente que um espírito assim irrequieto na procura do saber e de novas tecnologias, não ia ficar indiferente às possibilidades da Internet.
Vivendo completamente só, por ser viúvo e ter os filhos distantes, passa o dia muitíssimo ocupado contactando amigos reais ou virtuais, fazendo pesquisas, escrevendo artigos técnicos e também narrando muitas das suas memórias no blog “Engenhocando”, merecendo o interesse de alguns sites brasileiros.
Há alguns dias escreveu um texto no seu blog com o título “Que bom chegar a velhinho” que publico aqui, com a devida autorização do autor, dedicando-o a todos os amigos candidatos a idosos, fase a que poderão chegar se tiverem sorte na vida:
"Provavelmente, o leitor que chegar a este blog, ficará um tanto atónito com a expressão escolhida para esta crónica, pensando provavelmente que a velhice deve ser uma grande chatice! Na realidade, se uma pessoa tiver levado uma vida sem nada para recordar, e se ainda por cima, não tiver já uma boa saúde, achará que a velhice, deve ser uma coisa muito chata, mas quando há muito para recordar e ainda interesse por viver, encontra muito de que falar... Na realidade, a velhice, quando cá se chega, como eu aos 81 anos, vem acompanhada de muitas surpresas, às vezes um tanto desagradáveis, certos abanos na saúde, a noção de que já faltam muitas coisas que se foram perdendo pelo caminho dos anos, mas enquanto se tem a noção de que numa longa vida, tem mesmo de existir muitos solavancos e nos temos de ir preparando para o passo final... pensa-se de forma diferente... Alguém me poderia perguntar: "Qual é a melhor hora de cada um dos seus dias?", e eu poderia responder que é o acordar e uma pessoa sentir que ainda está viva e lúcida. Depois dum cigarrinho para ajudar a acordar completamente, dada a preocupação de não deixar cair nenhum morrão sobre a roupa, segue-se o ir fazer o pequeno almoço de sopas de café com leite, e vir comê-lo para a cama e logo seguido de outro cigarrinho... Muito confortavelmente instalado, agarra-se uma boa leitura por mais uma hora e se pára. Segue-se um período vazio de olhar o tecto branco e tudo o que nos rodeia, e no silêncio total da falta de companhia, ficar a pensar no que se poderá fazer de agradável, para encher as horas do dia que acabou de nascer. Como o leitor deste blog já teve várias vezes a oportunidade de ler, eu sempre me lembro de que tenho tido muitas ocupações diferentes e, se for alguma em que possa aprender qualquer coisa, ainda melhor. Eu costumo pensar que as únicas coisas que me crescem actualmente, são as unhas e o cabelo... o resto já se foi andando e desaparecendo, mas como tudo se vai lentamente, nem dá muito para se ficar preocupado, mas simplesmente com certa pena. Vão-se os dentes, o ouvido e a vista, com baixa imenso de sensibilidade, as pernas começam a ficar perras e em vez de se andar, damos que estamos mais a arrastar os pés e a tropeçar ao mais pequeno descuido, e se fica com a saudade do interesse sexual que tanto abundava uns anos antes, e se extingue. Se se envereda pela INTERNET, os amigos que se vão juntando e fazendo companhia diariamente, são um enorme aliciante, pois cada um nos vai dando noticias do que está a fazer ou a pensar fazer, os que necessitam dos nossos conhecimentos adquiridos durante tantos anos, e nos enviam imagens lindas de ver, de todos os tipos, de terras distantes e lindas de ver e conhecer, do aparecimento de instrumentos que todos os dias se estão a inventar e mulheres, lindas mulheres, daquelas que tem TUDO o que qualquer homem gosta de ver... enquanto os seus olhos ainda conseguem enxergar alguma coisa! Mas eu nasci com uma necessidade imensa de conversar com toda a gente, mais novos e mais velhos, ricos e pobres. Por esse motivo, em 1948, quando me apercebi de que a morte só me tinha passado ao perto, logo me entusiasmei pelas actividades radioamadoristicas que me abriam imensas portas científicas, e a ANACOM me forneceu o indicativo de CT1DT, que ainda hoje possuo e uso. Assim, e embora ainda num sanatório, me fiz radio-amador e de lá das altas montanhas do Caramulo, consegui encontrar imensa gente da minha idade, 17 anos, e muitos, quase todos, mais velhos. E, como os anos iam andando e eu a ver imensos amigos a morrer, ricos e pobres, mas em especial os bem comidos e bem bebidos, lembrei-me de fazer uma lista dos que se tinham ido, a que chamei de "Triste Lista", onde já inscrevi 375... Assim hoje, eu sou, dos poucos velhos amantes da rádio, que ainda existem em Portugal! E lá se vão encontrando aqueles velhos amigos de há mais de 60 anos, que também se meteram com a NET, e com quem estamos de conversa, horas e horas, recordando os tempos passados... as aventuras que tivemos, as empolgantes experiências de todos os tipos, os sustos e os fracassos que apanhámos e as alegrias que nos encheram a vida, as mulheres que nos acompanharam e que algumas vimos morrer nos nossos braços... E mais, a vermo-nos uns aos outros... via MSN em televisão. É uma pena que muitas pessoas que chegaram à idade avançada, não tenham a coragem de se meter na NET, pois ficam sem quase nada para fazer, todo o dia, só esperando pela hora da alimentação, um passeiozinho pela rua, umas horas a ver televisão, e umas sonecas à mistura... Felizmente que, e desde há muitos anos, me enviam mensalmente pedidos de mais artigos para publicar e isso me ajuda a estar sempre de atalaia, para encontrar os assuntos sobre o que escrever e juntar fotografias e esquemas, que, muitas vezes, têm de ser feitas sem perda de tempo, para quando chegarem os pedidos, já ter alguma coisa pronta a seguir. Entretanto já tenho publicadas, cerca de 1000 páginas de assuntos técnicos, e por isso, muito diferentes destes que aqui escrevo. Eu devo ser considerado um tipo muito especial, talvez "maluco", dado que, se se for à NET e lá escrever ct1dt, em QRZ.COM, vai ver que lá está a minha fotografia de há poucos anos e a indicação de quase 2000 visitas ao meu indicativo...e fico a pensar no porquê ...quando a maioria, anda pelas 200 ou 300 visitas... Quase todos os dias nos entram pelo casa dentro, no computador, anúncios das mais rocambolescas coisas, desde as comidas que fazem bem a tudo, as anedotas, aos comprimidos de Viagra que já não nos serviriam para nada, há de tudo! Mas uma coisa é certa, desde há muitos anos, que me habituei a uma alimentação muito simples, como um prato de sopa de legumes e massa, um ovo estrelado ou em omeleta, um fruto, meio pãozinho, um pouco de queijo de barrar, e um copinho de sumo de laranja, é quanto basta, pois as sopas de café com leite da manhã e do lanche, bem docinhas, fazem o resto. Perde-se a vontade de andar a medir a tensão arterial e de andar sempre nos consultórios, quando já se sabe que as análises que foram feitas anualmente, se mantêm estáveis. Então, para quê ir fazer mais? Claro que há muita gente que necessita de vigiar as diabetes, se as tem, mas quando se fez uma vida muito cuidadosa, regrada e simples na alimentação, não fica nada por onde se ter de cortar. Aprendemos que mais cedo ou mais tarde, todas as comidas muito condimentadas, acabam por vir a fazer mal. Então eu as eliminei... pura e simplesmente! Nada de fritos, nem refogados, nem gelados, desde que vim a saber que eram feitos de manteiga e leite... e andar a comer "manteiga" à colher, é mesmo um suicídio...Uma coisa aprendemos, é que os dentes postiços nunca mais funcionam como os de origem, e nunca mais se consegue trincar como dantes. Se os dentes não conseguem desfazer uma carne um tanto rija, mais vale ir metê-la no triturador, 1,2,3, e comê-la logo moída, em vez de exigir que um estômago com mais de 80 anos, o consiga fazer convenientemente, à custa do seu corrosivo ácido clorídrico. Ou então, pura e simplesmente, eliminá-la da dieta. Por quê teimar em comidas que se digeriam bem aos 20 e aos 30 anos, mas que agora são um sacrifício tremendo para o estômago as digerir? Quando se vive completamente só, fica-se muito restringido na alimentação, a coisas muito simples, e estar o mínimo de tempo na cozinha, nem que seja por preguicite aguda... Mas uma coisa que parece tão simples de fazer para toda a gente, como partir um ovo para estrelar... até isso fica complicado, pois a maioria das vezes rebenta a gema e aquilo fica uma autêntica chachada!! Eu não me sinto como pessoa desajeitada, até porque me consigo entender dentro dum relógio de pulso e com os seus micro-parafusos, as micro-rodas dentadas, mas fico mesmo chateado quando, ao pretender fazer um bonito ovo estrelado, acabo por vê-lo rebentado na frigideira, embora se possa comer aquela mistela... Ná, aquilo tem de ter a sua técnica, pois uma coisa é partir um ovo para mexer ou fazer uma omeleta, e outra, fazer um estrelado... é muito diferente e eu tinha de aprender... Assim, peguei um, coloquei-o numa balança e com o gume duma faca, fui fazendo força, lentamente, e medindo a força.Verifiquei que a casca estalava aos 3,5 Kg, mas só ia dentro, aos 4 Kg... e sem rebentar com a gema... Bem, pensei eu, então o que tenho de fazer é várias pancadinhas à sua volta para facilitar que se abra, e assim lá me tenho safado... e podido comer, regalado, e molhado com bocadinhos de pão, a sua saborosa gema e a clara, levemente tostada à volta. Mas como é óbvio, vão-se fazendo disparates, quase todos os dias, e ainda hoje, fui fazer o café e me esqueci do próprio café! Só tinha água quente!!! Noutra vez, foi ao contrário, coloquei o café e esqueci-me da água, que teimava em não subir... e ia acabando com a maquineta, que quase se ia derretendo !!! e café... nada ! Ou ir fazer duas ou três compras e chegar ao super-mercado e já não saber o que ia comprar e outras, encontro as coisas e me esqueci do dinheiro... O que me vale, é que todo o mundo me conhece e vai perdoando, mas nem que seja um euro, eu tenho de o ir lá levar. Não posso ficar a dever um tostão a ninguém... fico mesmo doente... Ou sair de casa com braguilha aberta... ou com os botões da camisa, trocados... Ou andar pela casa à procura duma coisa que já nem sei o que era... tendo de voltar atrás... As coisas de casa, como limpar e arrumar, é que me custa um pouco mais, em especial o ter de fazer a cama, dificilmente sabendo o lado da cabeça e o dos pés... ou se está direito ou do avesso... E passar a ferro uma data de roupa... O leitor poderia perguntar: e porque é que não vai comer fora? Porque me custa muito o tempo de espera pela comida, pensando no que poderia estar a fazer em casa, com os meus brinquedos, responder ao correio electrónico, escrever um artiguinho como este, ou preparar um outro para publicação... E viva a velhice !!!! que é linda de viver ... e deixa-me ir embora, senão nunca mais acabo... e me ponho a contar como dei dois valentes trambolhões esta semana e de cabeça no chão... e como consegui acabar com umas dores de cabeça que não me deixavam dormir... talvez devido aos trambolhões, mas isso daria para outro artigo..."