Hoje vou fazer um parêntesis nesta série de publicações que temos vindo a fazer sobre a quinta, suas plantas e seus animais.
Certamente já se interrogaram sobre a razão de ser desta fotografia. É muito simples! Apresento-vos os meus pais, o famoso e internacional ilusionista Princ e a sua partenaire Juliette. Pois é verdade, sou filha de artistas de circo! Eram anos difíceis. Milhares de desempregados (sem subsídios), dificuldades várias e muita fome à mistura. O meu pai resolveu enveredar pela vida artística e preparou-se nesta arte. A internacionalidade dele só era verdadeira se pensarmos nos distantes ascendentes espanhóis, pois que nem sequer em Espanha tinha posto os pés. A minha mãe Julieta, alentejaníssima, só conseguia passar por francesa, com a sua tez morena e cabelo frisado, nas tournées pela província onde ainda nem se sonhava que um dia iria aparecer uma coisa chamada televisão.
O convívio com as práticas do ilusionismo fez de mim uma mulher céptica que muitas vezes não acredita no que os seus olhos vêem (e muito menos no que vêem os outros), precisamente por saber que a realidade também gosta de pregar partidas, confundindo os nossos sentidos e nem sempre é facilmente visível.
Eu era muito miúda e desses tempos apenas tenho curtos momentos memorizados. Lembro-me de dormirmos num palheiro numa das viagens em que o dinheiro não dava nem para uma pensão rasca. Lembro-me de ver o meu pai a passar pelo público e a tirar moedas do nariz das pessoas que ficavam boquiabertas e que logo a seguir elas mesmas se punham a apertar de novo o nariz a ver se saíam mais algumas. Lembro-me do desaparecimento da varinha mágica (muito diferente das que usamos no cozinha), uma peça importante na encenação dos números de ilusionismo e dias depois o seu regresso, atirada pela janela aberta do quarto onde dormiamos nessa noite. talvez por ter decepcionado quem a levou. Lembro-me da aflição da minha irmã ao fazer trabalhos escolares que não iria entregar por ter que mudar de escola no dia seguinte. Lembro-me da criação de rolas, pombos e coelhos, igualmente artistas até no momento em que apareciam cozinhados na mesa. Lembro-me de uma figura que mais tarde foi conhecida por professor Karma que chegou a criar o "Instituto Cosmopsicológico Professor Raul Karma" em Lisboa mas que na altura era o palhaço Raulito (as voltas que a vida dá!...). Lembro-me da azáfama da montagem do circo: os trabalhos de elevação das orcas que depois eram espiadas ao chão, o rideau em chapa envolvendo o circo e protegendo os lugares da bancada da geral. Por fim o chapiteau que era a cobertura em lona. No interior montavam os gradins que fixavam as tábuas dos lugares sentados da geral que era a zona com bilhetes mais baratos, o palanque onde iria actuar a orquestra, preparavam a pista, colocavam as cadeiras para o público mais endinheirado. Lembro-me das tardes mornas, deitada no chão de areia, vendo os trapezistas a treinar por cima de mim, quase em silêncio, ouvindo o zunir das cordas, o som surdo de mãos que agarram mãos com firmeza, a respiração mais ofegante de alguém e, de vez em quando, sobrepondo-se sobre os outros sons, as ordens curtas do trapezista mais experiente. Pequenas memórias que relampejam quando estou triste. Mas o que me ficou mais gravado e que hoje ainda me emociona, foi aquela noite em que esperava que os meus pais arrumassem o material que tinham acabado de usar e fui dar uma volta por entre as roulottes estacionadas de uma forma organizada. Uma delas tinha luz e fui espreitar. Lá dentro estava o Zéquinha Barnabé, o meu palhaço mais querido, o que só fazia disparates e malandrices levando grandes tabefes do outro e que nos fazia rir até às lágrimas. Aquele que passava por nós - pela miudagem - com um sorriso de orelha a orelha e fazia festas nas nossas caras enlevadas. Pois o Zéquinha estava sentado dentro da roulotte e de costas para a porta. Subi o degrau devagarinho e fiquei a espreitá-lo. Ele estava em frente a um espelho a olhar-se. Levou a mão à cara e tirou o nariz encarnado. Fiquei boquiaberta. Acreditam que sempre pensei que ele tinha o nariz assim mesmo? Que as pessoas eram escolhidas para palhaços precisamente por terem nascido com aqueles narizes que davam vontade de rir? Fiquei ainda mais pasmada quando ele levou a mão ao cabelo e, devagar, foi puxando pelo magnífico cabelo ruivo que se foi descolando da cabeça, exibindo uma calvície por entre o cabelo fraquinho e escuro. A seguir pegou num pano que molhou num líquido qualquer e foi passando pela cara, esborratando num esgar aquele sorriso deslumbrante que me encantava. Nesses minutos tão breves, foi entre lágrimas que vi o Zéquinha a encolher, enrolar-se e evaporar-se para sempre do meu imaginário de criança. O espanto sacudiu-me o corpo e o soalho gemeu. O Zéquinha... não, não era o Zéquinha. Aquele homem estranho virou-se para trás e ao ver-me gritou: "Fora daqui, escanzelada!! Desaparece!!!"
Fugi dele a soluçar. Acabara de assistir pela primeira vez ao esfarrapar de uma ilusão. Tantas máscaras que continuei a ver cair desde então e sempre com o mesmo desgosto. Enrijeci. Hoje farejo a máscara à distância. E o curioso é que à medida que crescemos (ou que envelhecemos), deixamos de ver palhaços queridos a transformarem-se em pessoas banais, para vermos algumas pessoas que consideravamos queridas a transformarem-se em banais palhaços.
Para ti José que já conheces este lamento, fica a promessa de continuar a tentar escrever esta história da qual ainda não consigo distanciar-me o suficiente para a poder contar ao teu público. Dá-me tempo!
(Dedicado à minha prima Anica, uma mulher feita de paixões e de sonhos)
2021-07-10
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27 comentários:
yes.com certeza. Vou esperar o tempo que for necessário.Aliás,o tempo só é longo para a frente.O que está para trás é mesmo curto.Beijos e obrigado
Todos nós, em algum momento, tivemos necessidade de representar o nosso acto.Outros há que nunca saiem do palco, não sabendo onde e quando acaba a Peça.
É o teatro da vida.
É tão doloroso quando se chega ao fim do espectáculo que por vezes o queremos prolongar indefinidamente.
Gostei muito da tua história.
Fiquei muito surpreendida ao abrir o teu blog e deparar com a foto dos teus pais. Esta história eu já a conhecia, mas nunca a tinha lido e gosto mais dela assim...
Além disso adorei vêr a minha amiga Julieta ainda jovem,como sabes eu gostava muito dela!
Bj.
gostei de ler o texto relatando factos de antanho que bem podiam ter sido passados na actualidade...
a sociedade não mudou!
A Tá!
Este foi sem dúvida o post do teu blog que mais me marcou por razões óbvias.
Tenho saudades dessa mulher. Jamais a esquecerei e creio que muitos dos que hoje comigo convivem, sem nunca a ter conhecido, guardam as suas memórias de tanto as ouvir... quase que os faz acreditar que a conheceram.
Ao post falta apenas o pormenor de a identificares como "Tá".
Um beijo
Achei-te muito parecida com a tua mãe!
Tens uma história de vida riquissima. Teres presente todas esses momentos é sinal de teres a sensibilidade de qualquer um destes artistas.
Embora tenhas crescido com dificuldades, podes dizer que nem todo o dinheiro do mundo pode pagar as vivências que tiveste. Aquilo que quase todas as crianças adorariam conhecer.
Quanto a "...vermos algumas pessoas que consideravamos queridas a transformarem-se em banais palhaços." posso dizer-te que tenho pena, mas acontece-me o mesmo! Bj
Estou a começar a descobrir o teu blogue e gostei muito do aqui escreveste e como escreveste. Vou continuar a ler.
Um beijinho
É engraçado como chegamos aos blogues. Eu vim até ao teu através da Dona Redonda. Li "Um Parêntesis" e gostei. Vou voltar para ler o resto, pois a hora já vai avançada.
Bj
Concordo plenamente com a tua frase "(...)deixamos de ver palhaços queridos a transformarem-se em pessoas banais, para vermos algumas pessoas que considerávamos queridas a transformarem-se em banais palhaços".
Acho que a grande explicação para essa situação está reflectida nas palavras do anónimo que fez aqui um comentário. Há pessoas que se encaixam tão bem nas suas próprias mentiras, que elas passam a ser as verdades das suas vidas.
A máscara, de tão perfeita que é, chega a parecer aos outros, aos que não sabem viver na mentira, a face verdadeira. Tal como acontecia ao público dos teus pais, mesmo vislumbrando a verdade, custa-nos a crer que tenhamos sido enganados tanto tempo. Mas há sempre um dia em que temos de enfrentar essa realidade. Em que o nariz de palhaço cai e vemos a pessoa real que temos à frente. Dói sempre, mas é essa verdade que temos de enfrentar.
Um beijo. Gostei da tua história. Por todas as razões, deu-me alento para o momento que estou a viver.
Para ser mais fácil voltar espero que não te importes que te tenha "linkado". Estive a ler outros posts e gosto de como escreves.
Um beijinho
Não creio que possa dizer mais que isto: escreveste um dos mais belos textos que já li na blogosfera portuguesa. Belo pela forma como contas e pelo que contas. Obrigado por partilhares connosco essas promessas de outras tantas histórias. Fico (ficamos) à espera de mais parêntesis.
Comovente este pedaço da tua história de vida. Ler-te é uma experiência muito compensadora!
Tens uma grande vantagem sobre a maioria das pessoas: Consegues ver mais além, por detrás das máscaras que, infelizmente para todos nós, são cada vez mais!
um abraço
A semana passada pensei em arrumar as botas deste blog mas graças às simpáticas palavras de todos, acabei por hesitar e depois decidi continuar. Agradeço a paciência do José, a amizade sempre presente na Maria, as simpáticas visitas do Acácio, o entusiasmo constante do João, a comunhão de sentimentos da Fátima, às novas e amáveis companheiras de viagem Redonda e Anag, ao companheirismo da Anete, às generosas palavras do Manuel presente quase desde o início desta caminhada, à vivacidade do Ez que me visita mesmo com a casa a afogar-se e também a ti Anónimo que mais uma vez me surpreendeste por te sentir aqui tão perto... (e gosto). Para todos vós um apertado abraço e o meu muito obrigado!
Continuaremos a acompanhar os teus posts com o mesmo entusiasmo de sempre.
A surpresa, a expectativa do que cá poderemos encontrar faz de nós visitantes assíduos.
Às vezes aprendemos cedo demais.
Talvez seja melhor assim.
Quem sabe Ele também aprendeu demasiado cedo ou estava com dores de barriga naquele dia.
Sei lá.......
Ao fim e ao cabo,serviu para mais uma excelente história,tão bem contada por ti (como sempre).
Seria MUITO frustrante (não é que eu não conseguisse afogar as frustração, aliás neste momento consigo afogar tudo!*) conhecer-te e... perder-te logo de seguida!
Ainda bem que decidiste ficar!
Beijo
*momento pretensamente bem humorado, "tirado a ferros"!
Adorei a tua história, especialmente o fim.
Também estou deslumbrada com as tuas fotografias.
Um beijinho.
Tenho andado um pouco afastado e venh aqui deparar com mais uma bela história.
As máscaras sempre me fizeram confusão, muitas vezes pela dificuldade em as resolver, mas mesmo assim as dos palhaços ainda são das mais honestas (dependendo do tempo e do lugar, claro).
Só mais um voto, continue com o blog, quando posso é sempre uma visita agradável
Sei, por experiência própria, o tempo que os blogs nos tiram às inúmeras actividades que uma "quinta" nos exige, mas a verdade, Ana, é que são, também, um espaço de partilha, de companheirismo, de ternura de que passamos a sentir a falta. É um "prime time", se é que existe a expressão! Evita que nos isolemos apenas no trabalho. Conhecemos e convivemos com pessoas com as quais nunca teríamos oportunidade de cruzar as nossas vidas. Estes "cantinhos" são importantes para o nosso bem estar e para o daqueles que nos visitam. Por tudo isto, faz o possível por continuar. És querida por todos, escreves muito bem, contas lindamente vivências que muitos de nós não temos, mas que, através das tuas histórias, passamos a vivenciar. Por tudo isto, faz um esforço para não parar com o blog. Uma palavrinha de vez em quando, chega. Continuamos à TUA espera!
bjs
Bela, obrigada por te teres lembrado de mim neste texto tão bonito.
O teu pai, o teu circo, fazem parte do meu percurso enquanto menina e moça, mas agora mais crescida já algumas máscaras cairam, há que "aguentar a guinada", disse alguém.
Olha, gosto de ti e gostei de estar contigo e com o Tó, temos de retomar a busca de quem somos nós os Roman Navarro, (ou Ramon Navarro?), músicos, ilusionistas, marinheiros? Sei lá... há um pouco de tudo a correr-me nas veias.
Um beijo e bem hajas.
A tua prima Anica
Olá Ana. Se puder consultar este link que aqui deixo, encontrará um artigo de jornal do Natal de 1956 em que o ilusionista Prince trabalhou e foi muito elogiado na festa da empresa de electricidade UEP. http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=06528.066.15171#!11
Olá Salamander! Agradeço imenso o seu comentário e o endereço onde pude ler o artigo sobre essa festa que está guardada vagamente na minha memória, uma vez que teria uns 5 anos na altura e, embora sendo uma das figurantes, recordo o meu espanto e fascínio por um ambiente exótico que se passava à minha volta, ficando parada, observando tudo até levar um encontrão da minha mãe para começar a andar de um lado para o outro como me competia fazer :) Tentei enviar-lhe uma mensagem no seu blogue mas fiquei com a impressão de que já não estaria activo. Consegui ler os nomes de vários artistas que tinha publicado e ao ler o nome do Prof Karma, recordei que mais ou menos nessa altura ele era o palhaço Raulito. A vida traz-nos por vezes surpresas giras. Se quiser, mande-me um mail. Um abraço e mais uma vez obrigada.
Olá Ana. Por nada, obrigado eu. Realmente tenho coleccionado uns apontamentos sobre circo e ilusionistas. Este jornal que mencionei é trabalhoso de se consultar mas tem muitas informações daquela época em que havia muitos artistas portugueses. Obrigado. Um abraço.
Mana, hoje encontrei esta tua publicação, reconheci a foto e fui averiguar, já não me lembrava deste episódio. Adoro as tuas publicações, ca vou esperando mais algumas. Bj do teu irmão.
Passo aqui por hábitos antigos e temores novos, como os incêndios em todo o lado.
Esperando que estejas, tu e os teus, todos bem e a viver a quinta e os seus prazeres (e trabalhos, bem sei).
B
Gostei de saber de ti e do lugar onde continuas. Muitas vezes o lembro, porque o vi, porque o senti na forma adorável com que fomos recebidos. Obrigada pelas tuas palavras. Que estejam BEM e um Abraço
20-11-2022
Que história de vida rica ou que rica história de vida, Ana! Ouvindo-a (nas várias formas em que já a "ouvi" nesta curta existência em comum) pergunto-me como podem caber tantas coisas numa vida... E repito-me. Que bem que escreve! que escrita fresca e fluida. Vou ler tudo o resto, aos pouquinhos. :)
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