2007-09-10

A visita

Ainda estava naquela indolência de deixar passar os minutos, as horas, a olhar para tudo como se o tempo tivesse parado e não houvesse nada urgente para fazer quando fui surpreendida pelo ciciar de uma sombra, um sopro quase etéreo, uma sensação estranhamente indefinida, arrastando a incerteza que algo tivesse acontecido. Alheei-me da leitura que fazia e fiquei suspensa esperando que alguma coisa se repetisse. Passaram uns segundos e de novo a sombra, sim porque foi uma sombra que perpassou por mim, volteando, silenciosa mas pesada. Só podia ser um pássaro, pensei. E de novo sulcou o ar quase roçando o meu rosto. Desta vez consegui segui-lo com os olhos entrando na salinha onde poisou no velho sofá. Fui buscar a máquina fotográfica. Não era nenhum pássaro como poderão ver na foto, mas sim um surpreendente morcego (para mim são sempre surpreendentes estes mamíferos alados). Poderia tentar mais fotos mas o facto de saber que não são cegos e que havia a possibilidade de voar de salto ao assustar-se com a minha aproximação, acrescida da possibilidade de embater na minha cara podendo provocar uma histeria que não me é muito comum, foi perfeitamente dissuasor. Por isso apenas uma foto e já está muito bem.
 
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Tentei descobrir de que espécie seria mas foi completamente impossível. De asas abertas talvez atingisse a envergadura de uns 15 a 20 cm. Pedi ajuda mas, com uma foto tão limitada, também ninguém o conseguiu fazer. Abri a janela, acendi a luz no exterior e deixei-o sozinho. Dali a pouco ao entrar cautelosamente e com as mãos à frente da cara, percebi que ele já se tinha orientado seguindo o seu caminho.
Os morcegos existem há mais de 40 milhões de anos, podem viver entre 10 a 30 anos conforme as espécies e constituem bandos mais ou menos numerosos com comportamentos muito curiosos. Uma das coisas que nos surpreende é a forma de dormir pendurados de cabeça para baixo. Algumas teorias defendem que isso se deve ao facto de terem os dedos demasiadamente grandes das patas dianteiras, as que se transformaram em duas membranas funcionando como asas. Outras defendem que é pelo facto de terem patas traseiras tão pequenas e subdesenvolvidas que não suportam o peso sobre elas, embora aguentem a suspensão. E outras ainda pelo facto de ser mais fácil iniciarem o voo a partir desta posição uma vez que dificilmente conseguem voar a partir do chão pela falta de impulso das suas asas. Para ficarem suspensos de cabeça para baixo, não necessitam de nenhum esforço adicional. O próprio peso do corpo força a fechar os tendões que estão ligados às garras, não precisando de contrair nenhum músculo, por isso não cairá caso morra nessa posição :)) Quando quiser iniciar o voo é que necessitará de movimentar alguns músculos que abrirão as suas garras. Todos sabemos que se orientam nas suas caçadas nocturnas através de um sistema de ecolocação que consiste na localização das suas presas através dos ecos que recebem depois de emitirem ultra-sons pela boca ou pelo nariz e daí pensar-se que seriam cegos. Mas alguns até têm uma visão excelente. Normalmente têm só uma cria cuja gestação leva entre 2 a 7 meses conforme a espécie e são amamentadas com o leite materno. Caso haja o risco da cria nascer num período em que os alimentos sejam demasiado escassos, conseguem interromper o crescimento embrionário, para poderem hibernar e garantirem que o nascimento ocorra numa altura em que o alimento seja mais abundante. Nos primeiros dias, as crias são transportadas pelas mães nas saídas nocturnas, no saco interfemoral. Quando começam a ficar pesadas passam a ficar numa espécie de creche onde se juntam todos os bebés do bando. No regresso da caçada, as mães conseguem localizar os sinais sonoros dos seus filhotes entre milhares. No tempo frio, enrolam-se nas asas para se manterem quentes. Conta-se também que quando um morcego adoece e não pode sair para caçar, outros elementos do mesmo bando encarregam-se de obter comida para ele. Existem cerca de 1.000 espécies em todo o mundo e quase 30 em Portugal, a maioria em vias de extinção ou em risco. Os seus alimentos são diferentes de espécie para espécie, havendo os que comem insectos (um bando consegue devorar toneladas de insectos durante um ano, sendo óptimos para controle de pragas), os que comem néctar e pólen (importantes para a polinização das flores nocturnas), os que comem fruta (responsáveis pelo reflorestamento de algumas áreas através das sementes que caem com os seus excrementos), os que comem aves e pequenos mamíferos, incluindo morcegos de outras espécies, os que comem peixes e crustáceos e outros que se alimentam de sangue (apenas 3 espécies e nenhuma em Portugal).

E já agora conto-vos uma pequena história: Quando era menina, um amigo ofereceu-me um morcego preto, já morto. Podem estranhar a oferta mas eram outros tempos e tudo era divertido. Com o animal na mão – e sem pensar nas várias doenças com que me poderia infectar só pelo facto de o manusear sem luvas – resolvi embalsamá-lo. Tinha lido um pequeno livro sobre esta técnica e embora não tivesse nem instrumentos nem produtos necessários para o fazer, ainda assim, na minha ligeireza mental de adolescente, resolvi meter mãos à obra. Abri-o de lado com uma lâmina de barbear Nacet, com uma pinça puxei para fora todas as vísceras, lavei-o por dentro com água e sal, depois enchi-o com bolinhas de algodão que modificaram um pouco o formato inicial do seu corpo. No fim de tudo isto, cosi-o. Tirei-lhe os olhos e no seu lugar coloquei duas pequenas bolinhas de vidro de um velho ursinho de peluche. Procurei uma tábua envernizada que estava esquecida no quintal e coloquei-o em cima dela, de asas abertas, presas com preguinhos pequenos. Podem não acreditar mas ficou bonito.
E tudo ficaria por aqui se não entendesse que o deveria oferecer à minha escola para o colocarem na vitrina das ciências naturais. Mostrei-o ao meu professor de Português que era também o director da escola e que ficou tão encantado com o meu trabalho que foi logo colocá-lo na tal vitrina ao lado de outros pequenos animais metidos em frascos com formol. Foi um dos meus grandes sucessos na escola. Toda a gente parava para admirar o morcego de asas abertas até que a curiosidade esmoreceu e o morcego foi caindo no esquecimento. Meses mais tarde fui rever o meu trabalho. Estava esticado como eu o deixara mas com uma aparência um bocado estranha. Os olhos de vidro tinham-se afundado na cabeça, o pêlo outrora brilhante estava baço, o corpo tinha perdido a graça anterior e reparei numa aguadilha estranha que escorria manchando a tábua. Percebi que quando abrissem a vitrina deveria soltar-se um cheiro nauseabundo que iria destruir definitivamente o prestígio que eu adquirira. Felizmente era o último dia em que iria frequentar aquela escola.

24 comentários:

Flôr disse...

Eu sei, que vale a pena esperar pelos teus posts, porque é sempre um prazer lê-los.

Dentro dos animais que me arripiam incluem-se os morcegos, mas depois de te ler, até fiquei "amiga" destes simpáticos mamíferos.

Excelente post, com um sentido didáctico muito pertinente.
Parabéns.

Beijitos e boa semana

Chanesco disse...

Este texto leva-me à memória da minha infância, quando foi colocada a iluminação pública na minha terra.
Um dos passatempos da garotada era apanhar, com pequenos ramos de árvore (chamiços), morcegos que vinham à caça de insectos atraídos pela luz dos candeeiros.
Era a inconsciência infantil, acompanhada pela falta de sensibilidade, à época, para as questões relacionadas com o bem estar animal.

Um abraço aqui da Raia.

Berta Helena disse...

Olá Ana,
é sempre bom ler-te.
E ainda bem que estás de regresso.

Beijinhos

Anónimo disse...

E vivam os tempos em que se podia oferecer um morcego morto e fazer alguém feliz.
Admiro-lhe a coragem de embalsamar o bicho, e a história é de ir ás lágrimas ( com o bicharoco a desfazer-se nas vitrines da escola, impensável hoje em dia).
A minha filhota mais velha também colecciona bicharada, felizmente apenas insectos (por enquanto) e que mortos não necessitam de embalsamento, estão numa caixinha com fecho de segurança, não vá a mais achá-los apetitosos, e servem de "amuletos pregstígio" perante as visitas.

João Roque disse...

Olá Ana
que bela aula me deste sobre morcegos, esse estranho animal, que embora nunca me tenha feito qualquer mal, devo confessar, não me ser inteiramente simpático, nem mesmo depois de tu lhe "teres limpo um pouco a imagem"; mas fiquei mais rico, porque soube coisas muito interessantes.
E que maravilha a tua descrição do embalsamento do bichinho morto, o que as crianças não conseguem fazer...
Foi um prazer, como sempre, reler-te.
Beijinho.

alexandrecastro disse...

olá ana
ainda bem que já s elhe acabaram as férias.
gosto muito de passar por aqui.
beijinho

M. disse...

As coisas que tu sabes!

Paulo disse...

Parecia que estava a ler Mary Shelley. Consegues sempre surpreender os teus leitores. Embora saiba da importância ecológica dos morcegos, eles não me são bichos muito simpáticos (ratos com asas). Dissecar um e embalsamá-lo é coisa que nunca me passaria pela cabeça. És mesmo uma Mulher de coragem :)

Um beijo.

(Foi um grande prazer ler, claro.)

maria disse...

Ana, deves ter cometido algum erro no teu ofício de embalsamadora...
Os morcegos são mesmo animais interessantes é bom que fales neles.
Bom regresso!

Anónimo disse...

Quando eu penso que já conheço todas as tuas histórias, sou sempre supreendido com mais uma daquelas...

Chorei a rir, acreditas... Aliás ainda estou a rir por imaginar a tua cara ao veres o morcego a escorrer... e o que terás pensado... "ainda bem que hoje é o último dia...Tá no ir!"

Gostei!
Para além da informação... foi mais um dos teus posts divertidos...

Para quando a história da ovelha e do seu parto assistido :D ?

Ricardo disse...

Além da aula d história natural, ficamos sabendo das suas histórias, que sempre são saborosas e encantadoras. Já andava com saudade.

Tenho pra mim que esse morcego veio também em busca de tuas histórias...

Anónimo disse...

Repito a frase de m. "as coisas que tu sabes"...realmente sei muitas histórias tuas mas essa ainda não constava do meu rol.
Percebo agora que a tua veia para a cirugia já vem dos bancos da escola!
O teu artigo está muito bem escrito, como sabes sou amiga dos animais mas sinceramente os morcegos estão na lista dos que me arrepiam desde os tempos de menina, na Quinta do Pisão que tu conheces, cheguei a levar com alguns na cara que me deixavam em pânico.
Havia muitos e como sabes naqueles tempos podia brincar-se à vontade na rua pela noite dentro mas acho que os morcegos não apreciavam a nossa presença.
Cá fico à espera de outro artigo teu.
Beijo.

Anónimo disse...

Ressalvo: cirurgia.

pin gente disse...

gostei muito de ler... tudo.
fascinou-me o facto da opção de hibernação para adiar a maternidade.
beijinho
luísa

Luis Ferreira disse...

Quero agradecer a visita e o comentário no Mar de Sonhos. Vim conhecer tambem o teu mundo, o qual gostei.

Ate breve
Sailing

Anónimo disse...

"Dóceis contornos esculpidos a cinzel
Que reflectem a frescura da sua pele"

Joana Roque Lino disse...

Que grande lição! :) Um beijinho

redonda disse...

A fotografia foi uma sorte (muito bem aproveitada) e achei muito, muito interessante o post
um beijinho e um sorriso :)

poetaeusou . . . disse...

*
ana ramon
*
morcegos
dos medos de infancia ...
*
xi
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Maria disse...

Bem, fiquei a saber umas coisas sobre morcegos ... confesso que não é um animal simpático para mim ... talvez o peso das antigas histórias ou simplesmente o facto de ser nocturno e nunca ter visto nenhum. Quanto ao embalsamamento ... brrrrrrrr ... é preciso ter estofo !!!
Beijos grandes. Não me esqueci do mail (sou é preguiçosa ... às vezes)

bettips disse...

Surpreendente! Eu acho-os poéticos, um patinho feio da noite. E sobretudo, necessários na cadeia alimentar. Mas daí a mexer-lhes vai um vôo ...de morcego! Obrigada pelas palavras lindas, Ana. Isto é uma roda Viva, a de dar e receber. Bjinho

kuka disse...

Veio-me à memória uma "exploração" que fizemos no meu tempo de estudante(pertenci ao grupo de espeleologia) a uma gruta na serra da Arrábida. Chamava-se "fojo dos morcegos". Eram milhares de bicharocos destes.

Elsa Sequeira disse...

Olá!

Passo para avisar que Domingo 16 de Setembro, é o Dia Global da acção por Darfur, vários paises vão unir as suas vozes...em Portugal o evento terá lugar em Lisboa Concentração no LARGO DO CAMÕES - pelas 18 horas!
Junta a tua voz a estas vozes!

poetaeusou . . . disse...

*
eu quero
,
um novo post
,
xi
*