Andarilhar pela casa sem poder sair, obrigou-me a dar uma vista de olhos pelos livros que ainda não li, pelas pastas que aguardam uma pausa para poderem ser organizadas e até por antigos álbuns de fotografias. Descobri um que fiz há muitos anos e onde guardei fotos, cartas, postais, poemas, tudo aquilo que marcou de alguma maneira a minha infância e a minha adolescência. Ao folheá-lo caíram-me 2 recortes do antigo jornal Diário Popular que noticiava a existência do grupo ao qual pertenci e que tinha o nome de GAAM-Grupo Amador de Astronomia e Missilismo.
Era um pequeno grupo, unido pelo desejo de conseguir lançar foguetes que pudessem transportar e regressar com pequenos animais vivos. Passávamos muitas tardes de domingo em acesas discussões nas reuniões que se faziam na minha casa. A minha função no grupo além de disponibilizar a casa e quintal para o que fosse preciso era a de fornecer os ratos que infestavam a capoeira, tratar da correspondência e da divulgação do grupo, enfim todo um trabalho de secretariado uma vez que não percebia nada de física nem de química. Lembrei-me das experiências feitas no meu quintal, com latas velhas que disparavam no ar com o estrondo de bombas no meio de grande gritaria e assobios, o que fazia os vizinhos virem espreitar à janela, assustados.
Uma das misturas propulsoras era feita com açúcar e enxofre não me conseguindo lembrar das percentagens. Também recordei a sensação horrível que senti ao visitar um dos elementos do grupo que sofrera um acidente com uma explosão que só não o cegou por acaso e ao entrar no quarto, reconhecer os ratos que oferecera vivos, semanas antes, embalsamados e espetados na parede como decoração. Aqueles não sentiram a glória de terem sido lançados para o espaço
Mas, ao ver as fotografias e reler os recortes, lembrei-me do cientista Bettencourt Faria que tinha construído, quase só pelas próprias mãos um observatório astronómico em Mulemba-Angola, e que aceitou simpaticamente ser padrinho do nosso grupo.
Eu escrevera-lhe para pedir informações e contactos que nos fossem úteis aqui em Portugal e a partir daí gerou-se uma grande amizade entre nós os dois. Ainda conservo algumas, apenas três, das suas cartas e um postal enviado da Polónia, que são um exemplo da simplicidade dos homens grandes. Um homem que com o seu tempo todo preenchido por mil e uma actividades, ainda arranjava disponibilidade para escrever à máquina longas cartas e procurar cartazes com temas espaciais para enviar a uma miúda com 15 ou 16 anos que ainda andava no mundo a “apanhar bonés”. E sempre que passava por Portugal continental (na altura Angola ainda era uma colónia portuguesa) ia sempre visitar-me, conversar comigo e dar pequenos passeios a pé.
Lamentavelmente, a idade que eu tinha não era propícia ao reconhecimento do valor do homem que me escrevia e visitava.
Ao pesquisar na net encontrei o blog:
http://amateriadotempo.blogspot.com/2006/05/bettencourt-faria-e-o-seu-centro.html do qual tirei alguma informação que publico com a devida autorização do seu autor:
“Carlos Mar Bettencourt Faria, de seu nome completo, foi um autodidacta genial, dotado de um notável dinamismo e de uma enorme capacidade de trabalho. Ergueu com as suas próprias mãos aquilo a que chamou Centro Espacial da Mulemba. Neste Centro, ele deu largas à sua paixão pela exploração do Espaço, pela Rádio e pela Astronomia, construindo aparelhos de detecção remota, telescópios, antenas, etc. Dada a sua fraca capacidade económica, ele não podia dar-se ao luxo de comprar as coisas já feitas; fazia-as ele mesmo, aproveitando materiais usados, como foi o caso das agulhas de que falei acima. Mas não eram só agulhas de seringas que ele aproveitava; por exemplo, as grandes antenas que ele construiu foram feitas com sucata ferroviária.
Num tempo em que a Terra ainda não estava rodeada por satélites de comunicações, a NASA tinha necessidade de dispor de uma rede de colaboradores espalhados pelo mundo, que recolhessem os dados enviados pelos satélites e que estabelecessem contacto com os astronautas, servindo de "ponte" entre o Espaço e a sede da NASA. O Centro Espacial da Mulemba, em Angola, era o único observatório em todo o continente africano a fazer essa "ponte". Nenhum outro existia em África.
Para tal, Bettencourt Faria dispunha de um estúdio, pejado de aparelhagem, onde ele recebia e descodificava os sinais enviados pelos satélites e onde entrava em contacto com os astronautas. Tive a oportunidade de ouvir uma gravação de uma conversa que ele teve com o astronauta Neil Armstrong na Lua.
Era desse mesmo estúdio que Bettencourt Faria falava para o público, através de um programa de rádio do malogrado Sebastião Coelho (falecido no ano passado na Argentina), explicando de modo simples e claro o que se ia passando no campo da exploração espacial. Neste aspecto, ele fazia, em Angola, o mesmo que fazia em Portugal um outro notável autodidacta, inventor e apaixonado pelo Espaço, chamado Eurico da Fonseca. Ouvir um deles era quase o mesmo que ouvir o outro.
Não se pense, porém, que Bettencourt Faria se interessava apenas pelo Espaço e pela Astronomia. Os seus interesses eram muitos e variados. Fez investigação etnológica, tendo publicado livros sobre usos e costumes tradicionais de Angola. Era um profundo conhecedor de conchas marinhas, de que possuía uma notável colecção. Inventou máquinas de diversos tipos, entre as quais uma espécie de helicóptero individual, com o qual, aliás, sofreu um acidente e partiu vários ossos. Pintava quadros. Tocava piano. Era radioamador. Apetece perguntar onde é que aquele homem arranjava tempo para poder fazer tantas coisas diferentes.…”
Também na minha casa, várias vezes tocou piano para mim, dedicando-me as suas composições, dizendo que aprendera a tocar sozinho e que nunca tivera uma aula de música.
Num tempo em que a Terra ainda não estava rodeada por satélites de comunicações, a NASA tinha necessidade de dispor de uma rede de colaboradores espalhados pelo mundo, que recolhessem os dados enviados pelos satélites e que estabelecessem contacto com os astronautas, servindo de "ponte" entre o Espaço e a sede da NASA. O Centro Espacial da Mulemba, em Angola, era o único observatório em todo o continente africano a fazer essa "ponte". Nenhum outro existia em África.
Para tal, Bettencourt Faria dispunha de um estúdio, pejado de aparelhagem, onde ele recebia e descodificava os sinais enviados pelos satélites e onde entrava em contacto com os astronautas. Tive a oportunidade de ouvir uma gravação de uma conversa que ele teve com o astronauta Neil Armstrong na Lua.
Era desse mesmo estúdio que Bettencourt Faria falava para o público, através de um programa de rádio do malogrado Sebastião Coelho (falecido no ano passado na Argentina), explicando de modo simples e claro o que se ia passando no campo da exploração espacial. Neste aspecto, ele fazia, em Angola, o mesmo que fazia em Portugal um outro notável autodidacta, inventor e apaixonado pelo Espaço, chamado Eurico da Fonseca. Ouvir um deles era quase o mesmo que ouvir o outro.
Não se pense, porém, que Bettencourt Faria se interessava apenas pelo Espaço e pela Astronomia. Os seus interesses eram muitos e variados. Fez investigação etnológica, tendo publicado livros sobre usos e costumes tradicionais de Angola. Era um profundo conhecedor de conchas marinhas, de que possuía uma notável colecção. Inventou máquinas de diversos tipos, entre as quais uma espécie de helicóptero individual, com o qual, aliás, sofreu um acidente e partiu vários ossos. Pintava quadros. Tocava piano. Era radioamador. Apetece perguntar onde é que aquele homem arranjava tempo para poder fazer tantas coisas diferentes.…”
Também na minha casa, várias vezes tocou piano para mim, dedicando-me as suas composições, dizendo que aprendera a tocar sozinho e que nunca tivera uma aula de música.
Não consigo resistir a publicar aqui um excerto de uma das suas cartas:
“O que diferencia as pessoas não é ser bonito ou feio, não é ser rico ou pobre, não é ser católico ou protestante, inteligente de mais ou de menos. É uma simples coisinha que muita gente não atina: a capacidade de determinação, de persistência, aquela espécie de febre que não desce no termómetro quando encontra pela frente as dificuldades inerentes e imediatas a quem se quer guindar a um muro muito alto. Não faltará quem puxe as pernas, quem atire pedras, quem ponha cacos de vidro de garrafa das mais diversas origens no topo do muro. Mas sacudindo as pernas, cortando as mãos e os braços, suando pelo pescoço abaixo, que alegria é chegar ao outro lado, querida Ana! E não é o dinheiro, não são as glórias, nada, a não ser a incomensurável satisfação de ter chegado - onde os outros não chegaram - pelos seus próprios meios! Toda a vida fui um solitário (ainda hoje o sou e muito mais penoso é à medida que os anos passam) Nunca tive ninguém que me auxiliasse, e no entanto o que não tenho feito sozinho! É caso para envaidecer? Claro que não! É caso para eu sentir, sempre sozinho, uma felicidade tão grande que até às vezes me dá vontade de chorar!”
“O que diferencia as pessoas não é ser bonito ou feio, não é ser rico ou pobre, não é ser católico ou protestante, inteligente de mais ou de menos. É uma simples coisinha que muita gente não atina: a capacidade de determinação, de persistência, aquela espécie de febre que não desce no termómetro quando encontra pela frente as dificuldades inerentes e imediatas a quem se quer guindar a um muro muito alto. Não faltará quem puxe as pernas, quem atire pedras, quem ponha cacos de vidro de garrafa das mais diversas origens no topo do muro. Mas sacudindo as pernas, cortando as mãos e os braços, suando pelo pescoço abaixo, que alegria é chegar ao outro lado, querida Ana! E não é o dinheiro, não são as glórias, nada, a não ser a incomensurável satisfação de ter chegado - onde os outros não chegaram - pelos seus próprios meios! Toda a vida fui um solitário (ainda hoje o sou e muito mais penoso é à medida que os anos passam) Nunca tive ninguém que me auxiliasse, e no entanto o que não tenho feito sozinho! É caso para envaidecer? Claro que não! É caso para eu sentir, sempre sozinho, uma felicidade tão grande que até às vezes me dá vontade de chorar!”
De pesquisa em pesquisa encontrei este link:
http://apaa.online.pt/bettencourt%20faria.pdf, cujo autor é o Luís Filipe Bettencourt Faria, seu sobrinho, e que escreve assim:
Em 1976 o Centro Espacial da Mulemba, com um património de 200 mil contos e com uma reputação e actividades de âmbito internacionais invejáveis, entra numa fase difícil com o advento da Independência de Angola e com a consequente ordem de nacionalização desta instituição. Bettencourt Faria, então com 52 anos, passou algumas semanas numa tristeza profunda. Acusado de espionagem e de ter um arsenal de armas em casa, sendo-lhe confiscadas até as potentes espingardas de ar comprimido de caça submarina, com a sua correspondência e telefone vigiados, a estação de rádio amador CR6 CH selada, pessoal estranho ao serviço a querer saber como tudo funcionava, foi na tarde de domingo de 4 de Julho de 1976, traiçoeiramente degolado ao baixar o vidro do carro, quando cumprimentava o “segurança” de serviço no portão principal das suas próprias instalações.
Em 1976 o Centro Espacial da Mulemba, com um património de 200 mil contos e com uma reputação e actividades de âmbito internacionais invejáveis, entra numa fase difícil com o advento da Independência de Angola e com a consequente ordem de nacionalização desta instituição. Bettencourt Faria, então com 52 anos, passou algumas semanas numa tristeza profunda. Acusado de espionagem e de ter um arsenal de armas em casa, sendo-lhe confiscadas até as potentes espingardas de ar comprimido de caça submarina, com a sua correspondência e telefone vigiados, a estação de rádio amador CR6 CH selada, pessoal estranho ao serviço a querer saber como tudo funcionava, foi na tarde de domingo de 4 de Julho de 1976, traiçoeiramente degolado ao baixar o vidro do carro, quando cumprimentava o “segurança” de serviço no portão principal das suas próprias instalações.