2009-07-29

Os Pobrezinhos

Quando eu era menina, aí com os meus 10 anos de idade, tive oportunidade de ter uma experiência fantástica que vou agora partilhar convosco:
Numa manhã fria de Inverno, bateu-nos à porta um homem desgrenhado, mal vestido que vinha pedir uma sopa quente por amor de Deus. Nós também vivíamos com muitas dificuldades mas uma sopa arranjava-se sempre e a minha mãe foi à cozinha e voltou poucos minutos depois com um prato a fumegar que entregou ao homem que balbuciando qualquer coisa, virou-se para a rua e chamou alguém. Reparámos então que era uma pequena família constituída pelo pai, a mãe com uma barriga enorme de grávida e mais duas crianças ranhosas e maltrapilhas. A minha mãe condoeu-se com tanta miséria e preparou pratos de sopa para todos. A família dos pobrezinhos (como ficaram a ser conhecidos) sentou-se nos degraus de madeira do pequeno prédio onde morávamos e comeram ruidosamente.

(Foto oferecida pela Dulce Lázaro para avivar a minha memória)

No final entregaram os pratos quase lambidos, agradeceram e bateram na porta ao lado da nossa vizinha . Não sei o que lhe pediram. O que sei, e que nos fez na altura muita confusão, é que a vizinha mandou-os entrar e dali nunca mais saíram ficando a Pobrezinha a trabalhar dentro de casa e o Pobrezinho a trabalhar fora. Acabámos por nos habituar aos novos vizinhos, vendo as crianças com melhor aspecto e até a frequentarem a escola primária na zona. Mas passados poucos meses, numa bonita tarde de Primavera em que brincava no quintal, percebi uma grande agitação na minha casa e também na dos vizinhos que andavam a correr e a cochichar . Levantei-me precipitadamente para ver o que se passava e percebi palavras como parteira… bebé... e outras que na altura não me davam indicações nenhumas. A minha mãe entrou na cozinha a correr para pôr panelas com água ao lume que na altura eram aquecidas em fogareiros a petróleo e quando entrou na casa da vizinha com a panela de água quente na mão, eu entrei com ela e vi-me num pequeno quarto quase sem luz, onde estava uma cama de casal forrada com folhas de jornais e em cima deles a Pobrezinha de pernas escancaradas, sem cuecas e a gritar. Só então me apercebi que ia nascer o bebé que ela trazia na barriga. A excitação foi tão grande que me quis posicionar nos primeiros lugares da plateia quase competindo com uma mulher que não conhecia mas que percebi pouco depois tratar-se da tal parteira chamada à pressa. A Pobrezinha no intervalo dos gritos reparou na minha presença e certamente na minha cara estupidificada com tudo aquilo e gritou: - Não quero que a Belinha veja! Não quero que a Belinha veja!!! E alguém me empurrou do quarto e me fechou a porta na cara. Mas depois deste aperitivo, já não era possível verem-se livres de mim e, esperando pela oportunidade em que alguém entrasse com mais água ou mais jornais, consegui entrar de novo tendo o cuidado de ficar discretamente encolhida a um canto. Os gritos aumentaram de intensidade e de frequência, ao mesmo tempo que se ouviam os sons espalhafatosos dos puns que nem sequer me deram vontade de rir ao ver que empurravam bocados de cocó castanho que se espalhavam pelos jornais misturando-se com líquidos cor de sangue que borbotavam do pipi com umas dimensões que me deixaram estarrecida... O pequeno quarto cheio de mulherio estava irrespirável de bafos e de cheiros fortes. Após o esforço de um grito mais prolongado vi aparecer uma bola preta na “boca do corpo”, expressão que tinha acabado de aprender ao ouvir uma das vizinhas a falar cerimoniosamente com a parteira. Esta segurou na tal bola e virou-a mudando de posição e depois de mais uns dois ou três berros da mulher, saiu disparada agarrada a um corpo minúsculo que ficou em cima dos jornais praticamente imóvel mas preso por uma tripa ao interior da mãe. Entretanto começou a agitar-se e de repente começou a berrar aflitivamente e todas as mulheres disseram: Bendito seja Deus! A parteira segurou na tal tripa e disse que ainda pulsava e esperou mais uns segundos até achar que o momento já era propício para atar com uma linha que alguém lhe entregou e a seguir cortou com a tesoura da casa, separando a mãe do filho. Todas as mulheres presentes, incluindo eu, seguiam os seus movimentos e explicações com uma atenção desmedida... Depois começou a puxar a tripa devagar até sair um bocado de carne e ali em cima dos jornais abriu-a (lembro-me de ter achado a placenta parecida com uma flor) e disse: Está tudo bem! Duas mulheres lavaram logo o bebé numa tina com água morna, outras enrolaram aqueles jornais cheios de sangue e de fezes e outras trataram de meter a placenta no mesmo balde do lixo. Depois da cama arranjada, a Pobrezinha lavada e vestida com outra camisa e do bebé limpo e agasalhado é que chamaram o marido que entrou envergonhado por estar no meio de tanta mulher e sem saber o que fazer ou dizer. Olhou atarantado para o bebé e a Pobrezinha disse-lhe: É um rapaz! E ele: Ainda bem. O espectáculo daquele nascimento nunca mais me saiu da memória. Muitos anos depois tive a felicidade de ter os meus filhos também. Nasceram nas maternidades do Hospital Particular e do Hospital da Cruz Vermelha em Lisboa, e tanto num caso como noutro, acompanhada pela boa disposição do médico ginecologista que seguiu a gravidez desde o primeiro momento e também pela presença do meu marido que esteve sempre ao meu lado. Nasceram em salas de parto vulgares nos hospitais, não existindo ainda os tais quartos especiais para fazer a mãe esquecer que está num hospital e realmente esqueci-me, completamente entregue áquele momento único. Tive a sorte de serem partos rápidos, normalíssimos e sem uma coisa chamada Epidural. Na altura os bebés não ficavam juntos com a mãe logo após o nascimento. Só os traziam na altura das mamadas podendo a mãe ficar a descansar durante esse curto intervalo. Hoje esta prática foi posta de lado e entende-se que os bébés devem ficar ao lado da mãe desde o primeiro momento para se criarem laços mais fortes entre os dois. Há agora uma corrente defensora daquilo a que chamam de “parto humanizado” (expressão que considero infeliz pela brutalidade com que lança os outros partos para a nebulosidade do desumano) em que acreditam que os ambientes hospitalares e as suas práticas como aqueles onde tive os meus filhos, dão origem a vários traumas e consequentemente a relações dificeis entre mãe e filho no futuro. Mas felizmente connosco tal não aconteceu. Quem nos conhece, sabe que tenho com os meus dois filhos uma relação excelente que nos enche de orgulho, a mim e ao pai. Por isso sou contra a tentativa de convencer as mães para os imensos riscos nas suas opções. Acho que a mãe deve ter acompanhamento médico durante todo o processo da gravidez e que se deve informar devidamente sobre as várias propostas para o acto do nascimento. Mas só ela saberá qual a situação que lhe dará menos preocupações. Por isso pode escolher ter o filho em maternidade hospitalar, com ou sem quarto especial e com o apoio de uma equipa médica ou de o ter em casa assistida ou não por uma parteira experiente. Cada mãe é que sabe em que situação se sentirá mais calma, confortável, acarinhada num momento tão importante como esse em que a Natureza vai permitir que aquele ser especial que vive crescendo no seu interior se liberte para fazer finalmente parte de um mundo que o espera, precisa e conta com ele

20 comentários:

Duarte disse...

Um relato vivo, cheio de humanidade, vivido em primeira pessoa e, como tal, comovedor; engancha, mantém a tensão até ao desfecho.
Hoje felizmente tudo é muito diferente, A medicina é uma das ciências que mais progrediu.

Obrigado pela partilha.

Um forte abraço de boa amizade

maria diegues disse...

Mais uma história da tua meninice que eu desconhecia...
Gostei muito de lê-la.
Todo o teu relato está muito bem escrito.
Beijinho.

Rubi disse...

Que corajosa :), acho que se visse isso em crianca era capaz de ficar traumatizada. LOL

Anónimo disse...

Oi, Ana+Bela
Quando eu lhe sugeri que recordasse um pouco da sua infância, e conhecendo-a como conheço hoje, eu sentia que algo de emotivo iria descrever, e assim aconteceu! Chega a parecer estranho, como factos acontecidos ao despertar para a vida, nós fixamos tão fortemente, a tal ponto de continuarem presentes, após mais de 50 anos, como se tivessem sido ontem !
Parabéns e gostei muito.
Carinhos do
Mário

Maria disse...

Que experiência, Ana! Com a idade que tinhas, não admira que esse acontecimento tenha ficado tão marcado nas tua memória, e ainda mais colorido pelas palavras que te lembras da época.
Sabes que quando passo por ali, lembro-me sempre de ti. Foi muito gira aquela incursão à procura do teu passado.
Beijo grande

João Roque disse...

Sempre tive uma admiração sem limites pela mulher, ao dar à luz.
Parabéns a todas as Mães.
Beijinho.

Oris disse...

Uma vivência marcante na tua vida...Acho que se tivesse acontecido comigo ficava mesmo traumatizada...

Muito bem escrita esta tua estória. Prende-nos do princípio ao fim.


Beijitos, Ana.

poetaeusou . . . disse...

*
amiga
revivi o teu texto,
puro, claro, belo,
,
entre os meus 7/10 anos,
assisti, ou num cantinho
ou espreitando, a uma série
de nascimentos, de irmã, primos
e primas, num Casal familiar,
onde ainda residimos e se eleva
actualmente a mais de 300 pessoas,
foi á 50 anos, com uma taxa de
mortalidade de Zero por cento,
com gritos de alegria, e bacias
de água quente a saírem de várias
casas, e a Tia Branca da Parteira,
analfabeta a gritar, mais um,
mais uma, ponham mais um prato
na mesa . . .
a Tia Branca da Parteira, não
tem uma estátua, não tem uma
rua com o seu nome . . .
Porém,
ainda vive, vive na memória de
todos que ajudou a nascer,
vive no meu coração,
"aqui" neste cantinho,
que se chama gratidão !!!
,
bem hajas Ana,
,
conchinhas serenas,
deixo,
,
*

Tozé Franco disse...

Olá.
Excelente relato de uma experiência marcante.
Um abraço.

Maria Cristina Amorim disse...

Acabo de receber a feliz noticia de uma bébe que nasceu ao fim desta tarde, filha de uma amiga, e agora venho aqui e sinto que tiveste uma experiencia unica na vida.
O momento do nascimento é fantástico, e unico na vida de uma pessoa. A evolução da ciencia deu-nos a oportunidade de sermos assistidas por expecialistas na matéria, por isso porque não aproveitar?
Beijos e bom Domingo.

maria disse...

Nunca assisti a nenhum nascimento.Nos dos meus filhos fui o sujeito e não a observadora.
Concordo com o que dizes: a grávida ser seguida medicamente com todo o conhecimento disponível mas a escolha do local e do método de nascimento ser dela. Defendo o mesmo em relação à amamentação.

Joba disse...

Linda essa experiência, como a narrativa. Já pensou num livro de "A paixão dos Sentidos"?
Mais um projecto...
Bem haja.
Joba

A OUTRA disse...

Ana tem toda a razão, mas os grandes negócios não perdoam.
Estamos num mundo em que a aparência, ainda que perigosa, conta.
Hoje pergunto, estarão melhor apetrechadas para todas as eventualidades assas clínicas privadas, ou as maternidades dos nossos Hospitais?
O negócios é grande e poucos se apercebem dele.
Boa semana
Maria

Tombazana disse...

Parabéns pela excelente descrição desse nascimento. Tão bem feito ao ponto de me ter sentido eu também uma espectadora.

"Viajo" sempre por aqui...excelente blog

Beijinhos

Mare Liberum disse...

Vim até aqui recomendada pelo nosso comum amigo Pinguim mas creio que já te conhecia do meu Sophiamar. Fiquei deliciada com o teu texto perpassado de afectos e de humanidade. Já assisti a alguns partos mas creio que a experiência "do teu pimeiro" foi única e a tua mãe e a vizinha foram/ são grandes seres humanos.

Beijinhos

Bem-hajas

Anónimo disse...

Olá Ana, a minha mãe era parteira e lembro-me muito bem do primeiro parto a que assisti, este relato fez-me lembrar essa noite que fiz com ela na maternidade e em que vi nascer o bebé mais bonito que alguma vez tinha visto. Também já fui mãe, por três vezes e os partos foram todos muito diferentes e acho que em cada um deve sempre fazer-se o que sentimos mais confortável na altura.

bettips disse...

O afecto dos "condomínios do amor", no antigamente. Em que nos era dado "saber" da vida, amarguras e alegrias. Nada era preparado em televisão ou filme, mas pela realidade. Comovente este teu texto.
E sim, acho que a mulher deve decidir sempre, bem informada, do que lhe é a companhia/cuidados mais alegre para um momento tão Pleno! E nunca, isso nunca, levar logo o bébé para longe da mãe: a nossa fome é espantada e tem de ser satisfeita a vê-los logo ali ao pé.
Bjinho

pin gente disse...

que bonita experiência.
ainda bem que tanto "aparato" não te fez desistir da maternidade.
as minhas 3 vivências dos partos são diferentes entre si, mas todas inesquecíveis. no terceiro (da menina) não a deixaram ficar no meu quarto - olha, fui eu ter com ela (um pouco à revelia).
como sempre goste de aqui vir e de ler.
beijos

poetaeusou . . . disse...

*
procurei novas,
,
continuarei,
,
conchinhas, deixo,
,
*

Bichodeconta disse...

Estou encantada pela magia desta tua magnifica experiencia.. O parto é algo mágico..