2014-07-07

Marcos, por ele mesmo

"Se começo a contar histórias da minha vida, nunca mais páro. Mas agora nem preciso de falar porque o filme conta muito de mim. Lembro-me da  infância e dos espancamentos que sofria. A minha madrasta obrigava-me a roubar bolotas e tinha que encher a sacola todos os dias. Se era apanhado pela Guarda Civil, batiam-me e tiravam-me as bolotas. E, quando chegava a casa sem elas,  a madrasta  dava-me outra surra, punha-me fora da casa para que dormisse ao relento, como castigo. Ou seja, acabava sempre por apanhar sovas”
E Marcos desata a rir com fortes gargalhadas.
“Punham-me a guardar porcos e, como eu era muito pequeno, não conseguia tomar conta deles que acabavam por ir comer a cevada. Quando aparecia o filho do dono dos porcos e via o sucedido, ia buscar um cinto que tinha de molho dentro de um balde e batia-me com ele. Todos me batiam. É a lembrança que tenho da minha casa paterna. Mas perdoo ao meu pai. A vida naquele tempo era mesmo assim. Assim como lhe perdoo o facto de me ter vendido. Não sei se o fez por bem, para me livrar dos espancamentos ou se o fez por mal. 
Um dia chegou um senhor, dono de uma quinta e esteve a falar com o meu pai e ouvi-o dizer que lhe dava certo dinheiro se o deixasse me levar. Acertaram o acordo e o senhor levou-me com ele para sua casa. Mandou darem-me de comer e puseram-me um prato à frente com chouriço, toucinho, morcela, carne seca. E todos ficaram a olhar para mim. Quando anoiteceu, levaram-me de cavalo à Serra Morena, até uma gruta donde saíu um velho com barba e que tinha uns sapatos de cortiça. O senhor que me levou foi-se embora e deixou-me ali para ajudar a guardar as 300 cabras. O velho cortou um bocado de erva e pôs no chão da gruta, perto do fogo. Pôs uma pele de veado sobre o monte de erva e deu-me outra pele para me agasalhar. Não perguntava nada, nem falava comigo. Nada de nada. No dia seguinte, quando nos levantámos, chamou uma cabra e começou a ordenhá-la para um cocho de cortiça e depois deu-mo para beber enquanto enchia outro para ele. Soltámos as cabras que estavam num curral feito com estacas enfiadas na terra e fomos pelo vale com as cabras e eu sempre atrás do pastor. Pela tarde deu-me vontade de brincar e peguei num ramo e fui fazendo coisas com ele. O velho agarrou numa vara e deu-me duas vergastadas. Deixei de me aproximar. Mas como não conhecia o lugar também não me podia afastar muito.
Mais tarde disse-lhe que tinha fome e ele foi a uns penhascos que tinha buracos na terra, cortou uma pernada de uma esteva, que é uma planta que tem uma espécie de resina que se pega ás mãos. Deixou 3 ramos na ponta e foi metendo nos buracos, rodando-o lá dentro e tirando  de vez em quando para examinar o pau com atenção. Quando reparou  que o pau tinha pêlos colados, arranjou um pau maior que meteu nesse mesmo buraco e dando umas voltas, com perícia, retirou um coelho preso ao gancho que ele tinha feito. Bateu-lhe atrás das orelhas e com uma faca tirou-lhe as tripas e esfolou-o. Fez uma fogueira e quando só restavam as  brasas, enterrou o coelho nelas e fomos dar uma volta com as cabras. Cortou um ramo de medronheiro e disse-me para não comer muitos porque me podiam fazer mal.
Aprendi a contar as cabras usando duas latas: uma cheia de pedras e passava uma pedra por cada cabra, para a outra lata.
No início tinha medo do velho pastor. Mas com o tempo ficámos amigos e comecei a sentir-me muito bem. O pastor era para mim como se fosse um pai e varias vezes lhe pedi (receoso de certas noites na gruta) para nunca morrer porque estava muito feliz com ele, ao contrário de quando estava com a minha madrasta que me moía com pancada.
Mas uma noite disse-me para o esperar na gruta, onde dormíamos. Saiu e nunca mais voltou.
Fiquei sozinho e cheio de medo. Não sabia o que comer e por isso guiava-me pelos bichos. O que eles comiam, eu também comia. Os javalis comiam umas batatas que estavam enterradas e procuravam-nas farejando. Quando as estavam a desenterrar, eu atirava uma pedra e roubava as batatas.
Apanhava peixes fazendo-os entrar numa espécie de buraco que fizera no fundo do rio, atraídos pelos restos de animais mortos que metia entre as pedras.
Eu matava para comer.
Caçava veados, com a ajuda dos lobos, encurralando-os até ao rio ou ficava escondido enquanto eles desciam para beber e depois dava um salto e cortava-lhes o pescoço com uma faca. E os lobos sabiam que eu iria repartir a comida com eles. E se lhes dava de comer significava que era amigo deles. Os lobos vinham ter comigo e guardavam-me respeito. Além disso tinham medo porque eu fazia fogo. Mas davamo-nos bem. Sempre que estava em perigo e os chamava, apareciam logo.
Como a única roupa que eu tinha levado para serra, já se tinha rasgado, fiz uma samarra com peles de veado onde fiz dois buracos para poder prender com rama de trovisco e atava-a com um cinto feito também com trovisco. Usava o cabelo grande até á cintura.

Dormia com uma raposa que era a primeira a enfiar-se debaixo das minhas pernas quando havia tempestade ou chovia muito.

Uma vez cheguei a um lugar onde estavam lobos a brincar com os seus filhotes e acabei por adormecer. Quando acordei, a loba estava a rasgar carne de veado para dar às crias. Como estava cheio de fome, fiquei a olhar. A loba quando acabou de alimentar os filhotes, olhou para mim e largou um pedaço de carne. Não lhe mexi com receio de ser atacado. Mas a loba foi empurrando a carne com o focinho, na minha direcção. Peguei nele e, enquanto comia, a loba foi-se aproximando e começou a lamber-me. Nessa altura percebi que tinha sido adoptado. Depois disso, eu já era mais um da família e íamos para todo o lado juntos. Eu tinha o mesmo cheiro que eles e pouco a pouco tornei-me no chefe da alcateia

Uma outra vez peguei num lobinho e sem querer aleijei-o e a loba que estava ao meu lado, deu-me uma dentada e eu saí dali. Dias depois estava numa gruta e entrou a loba. Fui andando para o fundo, a pensar que ela me ia atacar, uma vez que já o tinha feito. Mas afinal trazia-me um pedaço de carne e ia-o aproximando de mim. Quando estava muito próxima, abracei-a.
Também tive um grupo de ratos que alimentava com leite de cabra e cuidava das águias que planavam por ali, pondo as presas nos corchos de cortiça e quando elas pousavam para apanhar a carne, eu abraçava-as e beijava-as e elas partiam muito mais felizes.
Uma vez perdi-me num bosque muito alto e não sabia como sair dali. Comecei a chorar e a uivar e os lobos apareceram e atiraram-se a mim, dando saltos e abocanhando-me os braços com a boca mas sem me aleijarem. E eu comecei a rir. Depois ensinaram-me como sair dali até á lobeira, a gruta deles e a partir dali eu já sabia o caminho.


O que é estranho é que os lobos nunca atacaram as minhas cabras, talvez por me verem com elas, não sei. E repare que os lobos são maus para as cabras.

Quando me morria uma, eu começava a uivar e vinham os lobos e comiam-na. Primeiro arrancavam um bocado aqui, no pescoço e logo a seguir atiravam-se ao bucho.
Um dia, um dos lobos queria matar um cabrito. Eu peguei num ramo com muitos espinhos e bati-lhe e ele deu um uivo e fugiu. No outro dia veio muito devagar, muito devagar a esfregar-se em mim e eu fiz-lhe festas. Depois fui a uma armadilha para apanhar perdizes. Mostrei-lhe uma e ele aproximou-se e comeu-a.
Tive uma cobra que vivia comigo. Criei-a desde pequena, fazendo-lhe um ninho com galhos e dando-lhe leite das cabras. Seguia-me para todo o lado e protegia-me. Salvou-me a vida, num dia de grande tempestade, quando me deu chicotadas com o corpo para evitar que eu me refugiasse debaixo de um sobreiro que segundos depois foi completamente destruído por um raio que lhe caiu em cima. E também me guiou até umas ervas que me curaram de uma diarreia originada por qualquer coisa que tinha comido.

 
Os javalis é que nunca foram meus amigos. É um bicho amigo se o criares desde pequenino. Mas mesmo assim é capaz de se aproveitar, quando estás a dormir, para te morder e comer… porque são uns porcos.
Apesar do frio, da fome e da solidão, fui completamente feliz. Dormia quando queria, comia quando queria.
Um dia vi um tipo num cavalo e assustei-me. Chamei os lobos mas estes também se assustaram com os tiros. Os homens correram para mim e apanharam-me. Ainda consegui morder um deles e por isso meteram um pano na minha boca e ataram-me com cordas.
Não sabia para onde ia e só queria voltar para a montanha
Levaram-me ao meu pai e não senti nada quando o vi. Apenas me perguntou pelo casaco que eu levara vestido quando saí de casa, como se ainda me pudesse servir.
O barulho da cidade assustava-me e não conseguia lidar com tanto barulho... o cheiro… os carros… as pessoas que iam para trás e para a frente como formigas. Mas pelo menos as formigas vão todas na mesma direcção. E as pessoas iam para toda a parte e eu até tinha medo de atravessar a rua.
Ensinaram-me a comer e puseram um pedaço de madeira nas minhas costas para me ajudar a caminhar direito porque eu estava todo torto por andar nas montanhas.
Compraram-me sapatos mas não os consegui calçar devido aos calos que tinha e quando mos tiraram tive que andar em cadeira de rodas
Esta nova vida era muito pior para mim do que a que tinha antes. Mas muito mais.
A lei da selva é muito simpes e entendia-me bem com ela. Mas as leis dos homens são muito complicadas e dificeis de compreender."
E com uma voz enraivecida, Marcos diz:
"Quando eu saí da montanha, o que deveriam ter feito, era mandar-me para uma escola para aprender a falar e a comportar-me. Mas fazer a primeira comunhão e o serviço militar? Aprender a atirar e a matar pessoas?
Quando fiz a primeira comunhão, perguntei às freiras:
- E isto é para quê?
E elas responderam:
- É para estar de bem com Deus. As coisas feias são pecado.
E fiquei sem perceber nada.
Também me disseram que se me deitasse com uma mulher, nasceria uma criança. Mas não acreditei.
No quartel também apanhei muita pancada mas acabaram por me mandar sair e devolveram-me às freiras que me mandaram ao dentista para me arrancar os dentes porque teimava em morder.
Ao principio tive muitos problemas. Eu era como um bicho que se solta na cidade.
Quando tinha fome entrava num bar para comer mas não sabia que era preciso pagar e por isso acabava sempre em confusão
Quando fui viver na casa do Manuel, era como se me tivesse saído a Lotaria. Fazia o que queria, o que me dava na real gana.
 

Fiquei maravilhado quando conheci Olivares. Olhei para a sua cara e vi que era uma boa pessoa e ainda por cima é de Córdoba, tal como eu.
Quando fui de novo à serra com ele, fartei-me de chorar
 
... e quando uivei e apareceram-me os lobos, quase morri de contentamento
 

 
Rebolei com eles e uma loba abocanhou-me o pescoço e até pensei que me ia morder.

Mas comecei a soprar-lhe, como quando beijas uma mulher, e a loba começou a lamber-me. Um lobo sentiu ciúmes e mostrou-me os dentes, mas eu também lhe mostrei os meus e pronto, ficámos amigos.
Fiquei contente com o filme porque foi uma maneira das pessoas começarem a acreditar em mim

Pensei muitas vezes em voltar para a floresta. Mas já estava nesta vida e vi que muitas coisas não existiam lá, como a música e as mulheres.
Só tenho pena de não saber ler nem escrever e não ter tido os meus filhos. Mas agora já estou acostumado a isto… e fico aqui"
 
E agora deixamos um endereço onde pode aceder ao filme completo chamado “Entrelobos”. A maioria dos vídeos tem o filme bloqueado. Mas aqui conseguimos visualizá-lo na íntegra, embora sem legendas… que na realidade nem são necessárias
http://es.gloria.tv/?media=339898
 Se quiser comprar o dvd pode fazê-lo por aqui:
...e não recebemos nada por esta publicidade :( 
Esperamos que tenham gostado desta incrível e quase desconhecida história.

 

 

 

5 comentários:

Duarte disse...

A isto é ao que se deve chamar um excelente trabalho de investigação e divulgação.
Conhecia este caso, não tão pormenorizadamente, mas foi do conhecimento geral nos meios de comunicação de há uns anos.
Sim, é impressionante, mas existem outros casos com situações idênticas.
Os meus parabéns, Ana, por tão extraordinario trabalho.
Um grande abraço

SOL da Esteva disse...

Relato soberano duma vida que teve o que de melhor pôde ter: liberdade e Natureza.
A "civilização" (tal como a conhecemos) não nos ensina que estas vivências sejam o primado da pureza, simplicidade, genuinidade... infelizmente.



Abraços

SOL

catrineta disse...

Olá Ana
Que história impressionante de uma vida incrível.
Como uma criança aprende a viver só, no meio dos montes e dos lobos.
Obrigada por partilhar connosco.
Um grande abraço
Rosa

João Roque disse...

Olá, Ana
depois da nossa conversa vim actualizar o teu blog, li com todo o interesse este magnífico post e claro que guardei o filme na minha página do Pinterest. Se quiseres visitá-la podes fazê-lo em
http://www.pinterest.com/joaoroque/ e na pasta "Complete movies.....",lá verás o filme.

Tosh.iro disse...

Impressionante relato sobre existência dessa alma tão desprendida e livre. Esse é uma pesquisa primorosa e detalhada que me impressionou muito. Realmente sinto-me feliz por agora conhecê-la.
Um abraço gigantesco do Brasil.