2007-11-27

Só faltaram as fadas

Estava uma tarde quente de Verão e eu descia a Rua do Alecrim em direcção à estação dos comboios, depois de mais um dia de trabalho no banco.
Parei uns curtos minutos em frente de uma montra para apreciar umas peças de cerâmica e pude dar uma olhadela ao meu aspecto com o cabelo cortado curto recentemente, a minha t-shirt amarela com uma flor bordada com missangas brancas e as calças à marinheiro de ganga também branca. Ao ombro a minha malinha de pano verde e vermelho com tirinhas amarelas, alvo da chacota dos meus colegas.
Sentia-me fresca e leve e por isso continuei a descer a rua num passo descontraído.
Ao chegar ao largo do Cais do Sodré, cujo nome é Praça Duque da Terceira, atravessei a primeira faixa com o sinal verde para os peões para depois atravessar a faixa dos carros eléctricos que entretanto estava com luz vermelha.
O carro eléctrico aproximava-se com velocidade mas dava perfeitamente para atravessar diante dele. E foi o que fiz. Eu e algumas pessoas que pensaram da mesmo forma.
Mas aconteceu um imprevisto: a correia da mala esgueirou-se do ombro e a malinha caiu, ficando no meio dos carris e aí já sem tempo para a poder apanhar. Esperei que o carro passasse para depois a reaver.
O carro eléctrico abrandou a velocidade mas ao passar, arrastou a mala consigo. Percebi que tinha ficado agarrada às peças salientes que o carro tem por baixo. O condutor avançou um pouco, depois fez marcha atrás mas a malinha não caiu mantendo-se presa a ele. O carro eléctrico imobilizou-se.
Olhei para o condutor expectante, para os passageiros debruçados das janelas, para as pessoas que se juntaram à minha volta curiosas com a ocorrência e, suspirando fundo, percebi que tinha que agir rapidamente.
E assim fiz.
Tirei um pedaço de cartão que espreitava de um caixote de lixo ali perto e ajoelhei-me sobre ele para poupar as calças brancas. Mas a correia estava de tal maneira enrodilhada naquelas peças que não tive outro remédio senão deitar-me no chão para poder trabalhar.
Não sei se algum de vós já viu as partes baixas de um carro eléctrico. Aquilo está tudo coberto por uma grossa camada de massa consistente, preta de tanto lixo acumulado e agarrando-se teimosamente a qualquer coisa que lhe toque
Acabei por conseguir soltar a mala e quando me preparava para sair dali, ouvi os gritos lancinantes e estridentes de uma mulher e pensei:
"Não me digam que o facto do carro eléctrico estar aqui parado já deu origem a um acidente grave!..."
Consegui esgueirar-me daquele inferno preto e os berros da mulher pararam como por encanto ao ver-me sair sã e salva. Só então percebi que os gritos eram pela aparência de eu ter sido trucidada pelo veículo.
Já de pé dei-me conta do meu aspecto horrível com camadas grossas de massa presas às mãos, aos braços, aos cabelos agora pesados. O mesmo se passava com a minha t-shirt amarela e com a parte de trás das calças
A mala de pano não se abriu e por isso não perdi nada. Mas o que levava dentro como a caixinha da maquillage mais o pequeno espelho estavam partidos e o livro, que andava a ler na altura, ficou meio cortado.
O condutor tocou para se despedir. Levantou o braço e o carro eléctrico seguiu caminho. As pessoas que se tinham juntado à minha volta, afastaram-se comentando o sucedido.
E eu apanhei o comboio, com montes de gente a olhar, intrigados com o meu aspecto e tendo que fazer a viagem em pé pela impossibilidade de me sentar com a parte de trás toda coberta de massa consistente.

O livro mantenho-o comigo... como troféu.
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36 comentários:

Anónimo disse...

moral da história: nunca se deve gozar com uma mala! ;)
beijinhos!

Bichodeconta disse...

Bem podia ser começo de uma história... Ainda assim se acabou bem , fico feliz.. Na mala por vezes transportamos o nosso mundo..beijinhos.

Eira-Velha disse...

As coisas que acontecem em Lisboa :)
Nunca esquecerei o dia em que tentei saltar do eléctrico em andamento e dei um espalho tal em plena Praça do Comércio em hora de ponta que cosntituiu uma das maiores vergonhas por que passei na minha vida. Mas levantei-me, olhei bem sério nos olhos das pessoas que não paravam de me observar como se fosse um bicho e fui embora altivamente como se nada se tivesse passado.
É a vida...

Maria disse...

E a foto que está no final é a do livro?? É que não abre .. fiquei sem saber qual era!
As coisas que acontecem quando nós estamos bonitinhas,fresquinhas e bem dispostas !!!! :-)
Beijinhos

Ezequiel Coelho disse...

Adoro as tuas aventuras!!!
Podias ter uma série "tipo" Seinfeld!!! Era de certeza um sucesso!!!
Beijos!

Flôr disse...

Vá lá....foi só o Bruno Bettelheim que ficou trucidado...

Há algures, cá por casa, esse livro. Parece-me que dá sorte... tenho que o procurar e guardar como se fosse um talismã.
:)
Gostei muito do que contaste e da maneira como o fizeste.

Beijitos, Ana

Filipe disse...

Foi obra do destino, para perceberes melhor o livro, gata borralheira e cinderela no mesmo dia

Anónimo disse...

Tem graça...
Ainda me lembro desta história e sabes, ou o tempo me atraiçoa, ou recordo que a tua mala, nesse dia, era uma das minhas preferidas... Colorida com um bolso de cada côr... Lembro-me bem? Ou é a minha imaginação? Seria de um material tipo camurça ou já estou a inventar muito?
Um beijo

Anónimo disse...

Oi Ana, que prazer ler o teu blog, tuas crônicas. Tenho lido vc e o Mário no Site Lima Coelho
www.limacoelho.jor.br

João Roque disse...

Uma história, ou melhor, uma aventura, muito bem contada de um facto que jamais esquecerás; é sempre bom compartilhar com os outros esses bocadinhos marcantes da nossa vida, eu pelo menos, sinto-me bem ao fazê-lo e não me custa nada...
Beijinhos.

Anónimo disse...

Apesar dos pesares que vão (des)governando este canto à beira-mar plantado, penso existirem poucos países em que um condutor abrandasse para alguém tirar fosse o que fosse de debaixo de um eléctrico (mesmo que fosse um corpo!) e que apaixonadamente gritasse ante a hipótese de alguém poder ter sido trucidado pelo dito... A mala ficava perdida, e, mesmo que fosse uma pessoa, exisitiriam, talvez, uns ahs e ohs de "aflição", mas tudo de uma forma muito bem comportada. Nunca percas esse livro, que daqui a uns anos te lembrará de como fomos solidários, um dia! Bom fim-de-semana!

Ricardo disse...

Vi toda a cena, como se fosse um filme. Vc tem o dom de nos enredar com suas palavras, tal como... uma fada!

Azinheira disse...

Grande história Ana, não propriamente um conto de fadas mas certamente rico em psicanálise. Ainda há quem diga que nada de interessante acontece nessa cidade...
Estou mesmo a ver a cena, vou voltar a lê-la mas desta vez em voz alta que é como me vai saber melhor.

Espaço do João disse...

Minha amiga .
Ainda acredita em fadas? Ser fadada é acordar todos os dias com saúde e boa disposição. Guarde o livro como se fosse um toféu. Quanto ao óleo que levou para casa, faz favor de o devolver à Carris para que se faça a sua reciclagem. Nada de poluir o ambiente. João.

Bichodeconta disse...

Reli, e deliciei-me novamente.. Grande contadoura de histórias..bom fim de semana...

Paulo disse...

Olá Ana. Que aventura! E o prazer literário que tens a contá-la. Dava um bom início de argumento para um filme de suspense.

Há dias que parecem predestinados para o nosso vexame: é como ir na rua, de manhã, depois de uma chuvada, e ficar todo salpicado de água preta atirada por um autocarro da Carris ao passar por uma das muitas crateras de Lisboa. Mesmo assim, essa não é uma visão tão assustadora como a da senhora que gritou na tua história.

Maria disse...

Já vi o livro! Tb anda lá por casa algures. Lembro-me que a minha o comprou.
Um beijo de boa semana.

pin gente disse...

eu acho que as fadas não faltaram! imagina se elas tivessem faltado!?!

beijo
luísa

Fénix disse...

Que história! Moral da história , não devemos arriscar e contrariar as regras, porque as coisas podem correr mal. Ainda bem que foi só a mala que caiu, podias ter sido tu.

Um abraço.

bettips disse...

mas que las hay...
Uma bela e pitoresca aventura, colorida mas bem sucedida afinal.
(Desculpa, por anunciar aqui que "portão" era mesmo para fechar um bocado. Foste a 1ª a responder e agradeço. Só um pouco cansada, da época...) Beijinhos, fica bem!

Berta Helena disse...

Olá Ana,

que bela história vim encontrar, tão bem contada, como de costume. Foi como se estivesse a vivê-la. É como já te disse, os teus textos davam um belo livro. Ainda hei-de ver um livro com capa muito bonita e o nome do autor, ao alto: ANA RAMON.

Beijinhos.

Bichodeconta disse...

Vou ficar á espera também do livro com a capa de autor ANA RAMON.. Gostei muito da parte do livro do Miguel Sousa Tavares, que admiro muito como ecritor e como homem.. É uma passagem belissima, obrigada pela partilha e por me levar até um livro tão bonito..um abraço forte, a Ana para além de fazer parte da minha lista de blogs preferida, passou a fazer parte do meu coração... Beijinho, ell

poetaeusou . . . disse...

*
ana,
faz muitos anos,
morava no principe real,
ia visitar uns amigos,embarcadiços,
ao alfeite,cais de alcantara,rocha de conde d'óbidos, onde estivessem,
manhã cedo, 6 horas, ia a pé para
o cais do sodré, em plena rua do alecrim, ouço gritos, correrias,
balas de borracha ... dei comigo,
na antónio maria cardoso,
foi bom, embora não soubesse o que era, senti-me antifascista, não sabia e continuo sem saber . . .
xi
*

Sei que existes disse...

Que aventura!
Beijocas

despertando disse...

E os teus colegas a fazerem chacota da vestimenta... Saberão eles que estavas linda de fazer parar o transito? ;)

teresa g. disse...

Que aventura! E ninguém se ofereceu para ajudar! Por onde andam os cavalheiros?! Bem, pelo menos alguém se preocupou.

Beijo

Tongzhi disse...

Deliciosa a tua história. Demonstra a mulher decidida que deves ser! Mãos à obra e cá vai disto!!!

Rubi disse...

Digamos que não foi propriamente um conto de fadas...lol...Beijinhos

poetaeusou . . . disse...

*
por aqui passei
*
xi
*

jorge esteves disse...

...o conto de fadas é sobre a história atribulada de uma malinha de mão (julgo que faltou, ao autor, acrescentar).
E, minha amiga: heroína é o que é!

abraço!

FERNANDA & SONETOS disse...

Olá Ana, passei para deixar-te um abraço de carinho.
Fernandinha

Bichodeconta disse...

De fada vestida, de amor o peito repleto, venho ao teu encontro... Não tenho presentes para dar que não sejam os da amizade..Aceita um abraço apertado envolto num laço de esperança num amanhã melhor em que o amor entre os povos, aconteça... Feliz Natal, um beijinho, ell

Ana Maria B disse...

Gostei muito da história. Muito bem contada. Senti-me mesmo a ir eu para debaixo do eléctrico, ver as entranhas do dito e ficar toda suja de massa consistente. Até ouvi os gritos da senhora solidária.Também achei graça ao livro, ficou lindo. Deu para acabar de o ler?
Eu, em tempos tentei ler esse livro mas não consegui. Os contos de fadas não eram os da minha infância, não estava a perceber nada, desisti.
Terei feito mal?

Pepe Luigi disse...

Passei para desejar um Feliz Natal, uma boa passagem de ano e um Bom Ano de 2008.

poetaeusou . . . disse...

*
vou passando
*

alexandrecastro disse...

ol´ana! li a história num sopetão e depois ,mais calmamente saboreei o momento...! um dia para esquecer mas magistralmente "narrado". beijinho