2006-12-18

Parêntesis de Natal

Posted by Picasa
Na minha casa de infância não se vivia o Natal religioso. Era um Natal pagão com a figura do Pai Natal que premiava igualmente as boas acções mas nunca sendo mãos largas por muito bonzinhos que tentassemos ser.
As recordações mais antigas, a partir dos meus 3 ou 4 anos, não me trazem a imagem do velho de vermelho e longas barbas. Éramos pobres e sem dinheiro para este tipo de disfarces. Não havia Ceia de Natal e jantávamos simplesmente como todos os dias, os mesmos de sempre: eu, a minha irmã e os meus pais. O jantar era um momento de grande tensão: eu era muito vagarosa a comer por nunca ter apetite e, naquelas noites, com a perspectiva da visita de tão ilustre personagem, a comida ainda mais demorava a escorregar pela garganta. Os meus pais andavam de volta de mim já desesperados, ameaçando com a ausência do velhinho face à minha lentidão a comer. Quanto mais diziam, mais me enervavam e menos conseguia engolir… Por fim, rendidos à minha falta de energia, tiravam-me o prato da frente e mandavam-nos, a mim e à minha irmã, para o quarto. Ali ficávamos com o coração aos pulos até ouvir aqueles murros na porta de entrada e uma voz rouco-esganiçada a perguntar se era ali que morava a menina Ana e a menina São. A minha mãe respondia que sim. E elas têm-se portado bem? - perguntava a voz assustadora.  E a minha mãe: Sim, sim, senhor Pai Natal!  E a voz num tom mais alto para se fazer ouvir no quarto: Bom, trago-lhes aqui algumas coisas e digam à menina Ana que se continua a comer como come, se calhar para o ano não apareço por cá!.
Quando ouvíamos a porta fechar com estrondo, saíamos do quarto a correr. Os presentes eram normalmente coisas que precisávamos: uma camisola que chegava aos joelhos para acompanhar o nosso rápido crescimento ou uns sapatos dois números acima pelas mesmas razões. Mas havia sempre qualquer coisinha que fazia os meus encantos: um pato bebé que passava a ser a minha companhia diária, dormindo comigo e tomando banho no mesmo alguidar que eu, fugindo de casa logo que estava grande e gordo, não conseguindo relacionar o desaparecimento do bicho e a canjinha oferecida nesse mesmo dia… ou um ratinho cinzento olhando para mim dentro da caixa de sabão, ainda meio esfalfado pela correria que teve que fazer no corredor da casa tentando evitar ser capturado.
Mais tarde, a partir dos meus 5 anos, já aparecia o velhinho todo marreco, vestido de vermelho, de barbas brancas meio descoladas que cheirava a Vick Vaporub que tresandava (substância pastosa que serve para fixar o algodão por breves minutos). Eu mantinha-me respeitosamente a alguma distância, respondendo às perguntas que ele me fazia, olhando curiosa para as luvas pretas que escondiam as mãos. De vez em quando aproximava a cabeça meio confundida por reconhecer nele o cheiro do corpo da minha mãe... outras vezes do corpo do meu pai. Mas a dúvida assim como aflorava também se dissipava logo a seguir. Horas depois era um deles que continuava a cheirar a vick. Sabe-se lá porquê.
Hoje temos muitas crianças na família, felizmente. E, ao jantar, ouço-as combinar entre si o que vão fazer ao Pai Natal: apalpar-lhe a roupa para ver se a barriga é a sério… puxar-lhe as barbas para ver se são verdadeiras... ameaças proferidas entre risos pelas mais velhas causando admiração e respeito das mais novitas. Mas depois do jantar, esperam ansiosamente por ele esborrachando os narizes nos vidros das janelas e soltam gritos histéricos quando vêem lá ao longe uma figura a caminhar por entre as árvores da mata com uma lanterna na mão e a repenicar uma sineta. Logo a seguir todas ficam em silêncio, de boca aberta quase deixando ouvir os seus coraçõezinhos a bater desordenadamente. E o vulto caminha meio desorientado,  ora aproximando-se, ora afastando-se mais, procurando a casa no meio da escuridão, tarefa difícil por estar quase às escuras, apenas iluminada por algumas velas para criar uma penumbra expectante como convém e 
fazendo a criançada desesperar.  Quando finalmente ele assoma à janela com as barbas erguendo-se ao vento e apontando para cada um de nós com o feixe de luz da lanterna, o nervosismo dos miúdos é tal que nem se atrevem a abrir-lhe a porta, quanto mais apalpá-lo ou puxar-lhe pelas barbas. São os adultos que abrem a porta ao velhinho ao som do "Joy to the World" e, sempre à luz das velas, somos chamados um a um, recebemos uma festa na cabeça, um conselho e um presente. Dizia o mais pequenito no ano passado: - Ó Pai-Natal, mas não faças ho-ho-ho porque eu tenho muito medo!
E ele não fez.
Saber que afinal o Pai Natal não existe, não é motivo de traumas. Quando se informa o mais crescido que o Pai Natal somos todos nós e que ele foi o escolhido para representar essa figura no próximo ano, a alegria é enorme e começa logo a magicar no que irá fazer para enganar os outros miúdos. As interpretações cénicas são tão bem feitas e divertidas que obrigam os adultos a fazer um esforço danado para não desatarem a rir perante o ar espantado dos mais novinhos.

É tão bom acreditarmos no Pai Natal que não nego essa alegria aos miúdos, antes pelo contrário. Sei que um dia se irão recordar destas cenas com muita saudade, tal como eu.

A todos os nossos amigos, companheiros e visitantes anónimos, os desejos de um Bom e Feliz Natal.

16 comentários:

Maria disse...

Adorei ler as tuas recordações e vivências (essa do Vick pôs-me mesmo a rir).
Um óptimo Natal para ti tb e que o Pai Natal deste ano seja um sucesso.
Beijocas

Anónimo disse...

Essa do Vick também não sabia...
Este ano possivelmente será a Leonor a ter medo do ho ho ho!!!!
Um Natal cheio de saúde para essa familia enorme e de que gosto muito.

Bjs.

Anónimo disse...

Infelizmente nunca fui muito dada a esta época. Mas não é razão para não desejar os meus votos de um feliz dia. As familias grandes dão outro brilho à coisa :)

Bjs :)*

Anónimo disse...

Que fantástica descrição!
Revejo-me em grande parte da "estória". As prendas, que na sua maioria era vestuário ou calçado, eram sempre enormes, mas depressa ficam no tamanho justo! Os brinquedos acompanhavam-me o resto do ano e eram bem aproveitados!
Quanto ao Menino Jesus, também lá ía deixar as prendas (só à meia-noite) e saía sem sequer lhe vermos o rasto!
Não tive trauma nenhum em saber que não era Ele quem nos trazia as prendas, até porque durante muito tempo julguei que, por a minha mãe ter uma religião diferente das mães dos outros meninos, a mim era MESMO o Menino Jesus que trazia as prendas!!
Sempre fui eu que "fiz" de Pai Natal (para os meus sobrinhos), porque era eu quem tinha a barriga maior e não me importava nada com a "encenação", até que a minha sobrinha reparou que, por debaixo das barbas brancas... existiam uma pretas!! e apressou-se a escrever numa folha de caderno :"O Pai Natal é o tio Fernando!!!" (que é o meu primeiro nome).
No ano seguinte, resolvi fazer uma surpresa aos "grandes". Pedi à minha tia que fizesse ela de Pai Natal, enquanto eu ía com os sobrinhos para outra casa. Vesti-os a rigor (de pai e mãe natal) e quando a minha Tia Natal estava junto à árvore, à espera que os miúdos chegassem (com algum "medo")... viu-os entrar todos sorridentes e foi uma gargalhada geral.
A partir daí... acabaram-se os pelos brancos da barba falsa, que se me entravam para a boca e para o nariz e acabou-se a sauna forçada dentro daquele fato!
(nunca me lembrei do Vick, mas conheço-lhe bem o cheiro!!!;))

Chanesco disse...

Passo para deixar os meus mais sinceros votos de BOAS FESTAS e que Pai Natal, acreditemos nele ou não, nos presenteie com a sua generosidade.

Saudações raianas.

Tongzhi disse...

Que bom que foi ler o teu texto. Fez-me recordar uma época à qual dava muita importância. Na minha casa, o Natal era vivido com muita intensidade. Era a época que o meu pai mais gostava. Fazia um grande presépio onde não faltava um ribeiro mantido a correr com uma "borracha" de água quente... Depois dos filhos, foi a vez dos netos acompanharem todo aquele ritual...
Que saudade...
Um beijo e um muito obrigado pelos momentos, alegres e tristes, que me fizeste viver.

João Navarro disse...

Sei bem do que falas!
Acho, aliás, que conheço bem esse pai natal da fotografia e o menino que o acompanha.
Quanto aos cheiros...o pai natal que eu conheço cheira mais a lavanda :) os tempos também são outros... mas sabes, mal por mal ainda prefiro o vick. Vê se compras :) Já não temos
Beijinhos

Fénix disse...

Quando era miúda, devido aos problemas económicos e familiares, o meu Natal nunca foi muito feliz. E por isso eu nem sei porque adoro esta altura do ano...

Beijinhos

Besnico di Roma disse...

Agradeço e retribuo os teus votos de Festas Felizes.
Peço uma explicação há cerca da “nabada” – os nabos são aquela coisa branca tipo batata, que tem umas folhas verdes por cima?...
Beijitos e Santo Natal

Anónimo disse...

Os meus infantis natais eram bem diferentes dos actuais e mesmo dos dos meus filhos. Mas apesar de já estarem todos os mistérios esclarecidos há uma certa magia ou nostalgia que sabe bem e se mantém.
Bom Natal!

Flôr disse...

Que as boas recordações da infância continuem a fazer parte do nosso dia a dia...

Um Santo Natal.
Beijinho.

Anónimo disse...

Um santo e feliz natal e que pelo menos que o pai natal deste ano tenha menos Vick....
Um excelente ano de 2007, com a continuação destes fantásticos posts!

MaD disse...

Boas Festas, cara Ana Ramon.

Fénix disse...

Feliz Natal Ana.

Beijinhos.

anete joaquim disse...

Está giríssima, Ana, a tua história! Quase parecia um filme de terror e de suspense. Imagino a tua preocupação com a possibilidade de o pai natal não aparecer só por não comeres depressa!
Um beijão
Divirtam-se a enganar a criançada. Podes dizer-lhe para aparecer cá em casa. Estou a precisar de acreditar no Pai Natal.

Ricardo disse...

Emocionante a tua história. Levou-nos a todos numa bela viagem a um Natal sem tanto marketing e obrigações de presentes "da moda".
Aproveito para deixar um Feliz Natal para você e todos os seus! Felicidades!!!