A gata Maria foi-me oferecida há mais de 10 anos juntamente com dois filhotes. Estes que já eram praticamente adultos, desapareceram passadas umas semanas e ela manteve-se sempre aqui tomando conta das ninhadas seguintes que escondia no palheiro até nos mostrar as crias já com os olhitos abertos, bamboleando-se nas patas e com as caudas espetadas para o ar. Nunca foi uma gata de colo, gostando de marcar as distâncias que existiam entre ela e nós. Mas ainda que tão arisca, sempre foi uma gata simpática.
Um dia estavamos a sair para mostrar os arredores a um grupo de amigos e vimos a Maria caminhando com muita dificuldade na nossa direcção. Saímos dos carros e fomos ver o que se passava. Tinha uma das patas traseiras com fractura exposta e a pele da barriga com uma série de cortes profundos o que dava a entender que teria caído numa armadilha para coelhos.
Com a ajuda e as opiniões de todos, pusemos uma tala na pata feita com pedaços da cana cortada, envolta em algodão e gaze para não magoar, tratámos os ferimentos da barriga com Betadine, pusemo-la no caixote onde costumava dormir e saímos mais descansados.
Todos os dias desinfectavamos as feridas que começaram a sarar rapidamente. Agora a pata é que estava a preocupar-nos porque a gata parecia inquieta, sempre a tentar lamber, sinal que as coisas não estavam bem.
Resolvi ir ver o que se passava. Consegui que a Maria permanecesse deitada (era engraçado que ela sabia muito bem que estava a ser tratada e nessas alturas não fugia) e tirei as ligaduras, as canas e o espectáculo que vi deixou-me arrasada: o osso não tinha consolidado, as duas partes da pata estavam só ligadas por uns fios grossos e brancos que deviam ser os tendões e o cheiro a podre que emanava da pata, não prenunciava nada de bom.
Fiquei a olhar para o animal e fui-lhe fazendo festinhas enquanto pensava nas hipóteses que tinha. De repente decidi actuar. Fui buscar algodão, gaze, água oxigenada, Betadine e uma tesoura que tinha comprado há poucos dias.
Chamei um rapaz que trabalhava na quinta, moço com vinte e poucos anos e que além do trabalho que fazia aqui, ainda era jardineiro por conta própria e bombeiro voluntário. Quando ele apareceu junto de mim, pedi-lhe para agarrar bem na gata Maria pelo cachaço de forma a ficar com as patas penduradas.
Segurei-lhe na pata esfacelada e com um movimento rápido de tesoura, cortei-lhe os tendões de uma só vez. A gata deu um berro que se deve ter ouvido a uma distância enorme e parte da pata caiu no chão. Reparei que o animal baloiçava perigosamente e quando olhei para o rapaz, este estava de olhos revirados, com o corpo a oscilar perigosamente e em risco de me deixar cair a Maria no chão.
Dei-lhe um grito:
-Ei!!! Mas que é isso, homem?? Segure lá na gata como deve ser!! Ai, mas que raio de bombeiro tenho aqui?!!
Ele recuperou quase de imediato. Olhou para mim de olhos esbugalhados com a cara mais branca que um lençol, entregou-me a gata e desatou a fugir.
Ainda me deixei rir com a bicha ao colo. Deitei-a em cima do muro, desinfectei-lhe o corte que nem sequer sangrou, tive o cuidado de cheirar a pele que não cheirava a podre como a parte decepada, pus-lhe uma gaze ensopada em Betadine e, para a poder seguir durante a convalescença, abriguei-a no sótão com um caixotinho forrado com uma manta, um prato com pedaços de carne, outro com leite e uma tigela com água fresca. E depois de uma cirurgia tão traumatizante, a gata Maria comeu a carne, bebeu o leite e deitou-se no caixotinho a ronronar, agradecida.
Foi muito rápida a recuperação. O corte fechou completamente e com o tempo até se cobriu de pêlo. Passados poucos dias já a Maria corria feliz atrás das lagartixas.
23 comentários:
Olha lá amiga...estou muito zangada contigo porque não sabia dessa cortadela da pata da Maria!
Decididamente és uma cirurgiã/veterinária com muita pinta!!!! e ias quase matando o bombeiro com um ataque cardiaco, coitado!
Até me arrepiei!!!!! Puxa, que história horrorosa para ler logo de manhã! Fiquei pior do que o bombeiro e só não fugi porque as tuas histórias, decididamente, prendem o olhar.
Vá lá que o final é feliz! Não há dúvida que és uma mulher decidida. Só espero não estar perto de ti quando um dia me magoar!!!! Ou, se calhar, é o melhor sítio para estar! Pelos vistos sabes o que fazer.
Até a contar histórias de horror és maravilhosa!
Mil beijões
Eu tinha caído para o lado...
Claro que não sou bombeiro; nem tinha perfil para isso!
Ufa..é preciso ter estomago! Os gatos e os cães "tripé" costuma ser bem desenrascados.
Pobre animal... pudias ter levado a gatinha a um veterinário... Mas se salvou...
Beijinhos
mas a Maria ficou sem uma pata?!?!
Eu fiz isso mas foi à asa de um pato (que ficou dependurada, por causa das dentadas do pastor alemão)
Prefiro não ter de fazer esse tipo de "serviço", mas quando é preciso...
Bjs
Estou mesmo feita uma "maria chorona"! Não é que me comoveu esta tua descrição!
Há três meses q tenho tb uma gata. É a minha companhia, e talvez por isso, me sensibilizasse com a tua história.
Fico feliz q tenhas tido tanto sangue-frio e q a gata Maria esteja finalmente bem.
Beijinhos.
Fiquei um pouco arrepiada ao ler a tua história.
A mim, acontecia-me pior que ao bombeiro...estatelava-me mesmo, no chão!!!
Ainda bem que a gata Maria recuperou.
Ah....esquecia-me...adorei a história.
Beijinho
Cara Ana Ramon
Que cirurgiã mais destemida e radical...
Certamente, muito poucas pessoas teriam a coragem de executar uma tal tarefa.
Parabéns pelos excelentes resultados, pois aqui temos a Maria tão recuperada que nada se nota.
Cumprimentos meus e da outra (a minha) Maria.
xj,estas letras foram uma tentativa do meu gato Zoco em cima do teclado. Não sei se em circunstâncias semelhantes teria o teu desembaraço, mas por vezes em momentos graves fazemos coisas surpreendentes. Se alguma vez precisar vou lembrar-me de ti e tentar não ficar como o teu ajudante, sem pinga de sangue.
Passei para desejar óptimo fim-de-semana e apreciar esta interessante página, onde impera a qualidade e bom gosto.
Diziam os antigos que a laranja em Janeiro ainda estava verde, e só era boa depois de “confessada”, isto é, depois da Páscoa. Daí o ditado popular que diz que «comer laranjas em Janeiro é dar que fazer ao coveiro».
Bem, cara Ana: o Jofre já respondeu àquilo que eu não saberia responder... ;)
Amigos
Ao ler os vossos comentários, fiquei a pensar que todos certamente ficariam muito mais chocados se eu tivesse dito que a gata Maria tinha morrido devido a uma gangrena. A verdade é que tal não aconteceu, por sorte, devido à amputação de parte da pata. Mas não pensem que foi um trabalho de alguém decidido e corajoso. Bem pelo contrário. Foi um trabalho feito por alguém muito receoso, temendo estar a agir demasiadamente tarde e culpando-se por isso mesmo. Há certos actos gloriosos que são mais o reflexo do medo do que da coragem, embora não pareçam e não sejam confessados. No final fiquei muito surpreendida comigo mesma. Tenho feito algumas intervenções nos animais (como toda a gente que está rodeada de bichos), mas coisas de pouca monta, algumas já contadas e outras que virei a contar. Nunca tinha feito nada de tão drástico. Foi um momento horrível em que tive que me fazer de forte ao ver o outro a fraquejar. Enganei-vos bem! :)))
3:54 PM
Às vezes só se pode fugir para a frente!!!
Ez
(esta coisa de não teres ainda feito o upgrade para o Blogger/Google, faz com que tenha que escolher o anonymous. Mas assino sempre! Bj)
Por acaso cheguei aqui e por acaso resisti à primeira tentação de passar por cima de uma descrição assim...
Faria mal se o tivesse feito. Foi agradável ter passado aqui e fez-me sorrir lembrar aquele velho adágio chinês que diz 'os donos não têm gatos; os gatos é que têm donos'...
Às vezes a decisão certa custa a tomar, mas parece que a tomou. Parabéns
Só um pormenor, em casos desses, se misturar o betadine com a mesma quantidade de açucar, o açucar funciona como catalisador e faz o betadine actuar mais depressa. Deve-se mexer bem antes de aplicar, tentar criar uma pasta homogénea.
A Ana é uma pessoa bastante determinada. Louvo a sua coragem.
No meu sinestesia-crepuscular já lá tenho mais qualquer coisa !
Quer ir fazer uma visita ?
Cumprimentos.
José
porra ana.
O comentário anterior que acho desagradável de um tal josé, apesar de ser josé não é meu.
A partir de agora passo a comentar como bloguer.
Olá Ana
A resistência dos gatos é incrível.
Não é por acaso que se diz que têm sete vidas.
Abraço e boa semana.
Tenho alguma coragem, mas não sei se conseguia fazer o que tu fizeste a sangue frio. Mas compreendo-te bem, era a tua Maria!!! Por ela farias tudo o que fosse preciso para que ela pudesse ficar bem, não é?
Pela foto, posso dizer-te que foste uma excelente veterinária! Com certeza que fizeste um trabalho que alguns ditos veterinários não teriam conseguido fazer.
Beijinhos
A Dª Ana não pára de me surpreender!!
E esta história ainda não me tinha contado!!!
O que será a seguir ???
Uma cesariana? Poderia ter dito algo que a teria aconselhdo...
Um abraço amigo do amigo do Odin!
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