Há tempos fomos a Castro Laboreiro buscar a Diana, o novo e
alegre elemento canino da família e pernoitámos por lá para podemos ficar à
conversa com os nossos amigos. Ao serão, o tema de conversa foi os lobos e o Américo
falou-nos do Marcos, que tinha conhecido pessoalmente, e que era um espanhol
que teria vivido parte da sua infância, sozinho na Serra Morena e com um relacionamento
estranhíssimo com os animais, principalmente com os lobos. A história era tão
magnífica que decidimos trabalhar numa série de pesquisas para a contarmos
aqui.
Marcos Rodríguez Pantoja nasceu em Andalucia numa pequena
aldeia chamada Añora, perto de Córdoba no dia 7 de Junho de 1946.
Mudou-se para Madrid, juntamente com dois irmãos e com seus
pais, Melchor e Araceli que procuravam trabalho.
A sua mãe acabou por falecer quando ele tinha 3 anos e seu
pai juntou-se com outra mulher que tinha um filho de um casamento anterior.
Este período do pós-guerra foi muito penoso, principalmente
na Espanha rural e deu origem a vidas muito difíceis e miseráveis.
Melchor entregou os seus dois filhos mais velhos para serem
criados por familiares em Madrid e Barcelona, e resolveu regressar a
Fuencaliente – Ciudad Real, no início dos anos 50 e dedicar-se ao fabrico de
carvão.
Marcos ficou a viver com o seu pai, a madrasta e o filho
desta, numa barraca feita com paus e arbustos e estava sujeito diariamente à
violência dos maus tratos da parte da madrasta e do seu filho.
Nunca frequentou a escola.
A difícil situação económica levou o pai de Marcos, muito
pressionado pela companheira, a dispensá-lo em 1953, a troco de algumas pesetas
(como era comum na época), a um criador de cabras que o mandou levar à Sierra
Morena, mais precisamente ao Valle del Silêncio para ajudar o pastor Dámian a
cuidar do rebanho.
Passados alguns meses, o velho pastor saíu da gruta e não
regressou mais.
Marcos passou a viver os 12 anos seguintes completamente
sozinho, apenas visitado de tempos a tempos por um enviado do criador de cabras
que ia buscar cabritos e lhe dava pedaços de pão como paga pelo trabalho.
Quando Marcos ficou sozinho - deveria ter uns 7 a 8 anos -
começou a aproximar-se dos animais, relacionando-se com eles, tendo sido aceite
por uma alcateia e mais tarde acabou por se esconder de qualquer contacto
humano.
Em 1965, quando tinha cerca de 19 anos (idade para cumprir o
serviço militar), foi brutalmente apanhado pela Guarda Civil, que sabia da sua
existência e da sua localização pelos relatos do criador de cabras que tinha
conhecimento da zona onde vivia o seu rebanho e por descrições de caçadores.
Marcos inicia assim a sua vida na sociedade de uma forma violenta.
O aspecto de Marcos era surpreendente: corria com o corpo
dobrado e coberto por peles de veado, o cabelo pela cintura, os pés com enormes
calos por andar sempre descalço, a pele do corpo tisnada pelo sol e cheia de
cicatrizes e utilizando apenas meia dúzia de palavras.
Levaram-no a
casa do seu pai mas este não quis ficar com o filho e por isso levaram-no a casa
de um padre onde lhe deram banho e cuidaram do seu aspecto.
O sacerdote
decidiu entregá-lo a umas freiras em Madrid no Hospital de Convalecientes de la
Fundación Vallejo onde viveu cerca de um ano.
A sua
recuperação foi muito difícil.
Dormia
debaixo da cama, talvez por ser mais parecido com a protecção de uma caverna.
Não
conseguia comer na posição de sentado à mesa. A primeira vez que lhe
apresentaram um prato com sopa não sabia como a comer. Olhou curioso e resolveu
pôr a mão em concha, mergulhando-a no líquido que estava demasiadamente quente,
fazendo-o dar um salto e caindo o prato no chão. Por isso, durante uns tempos
passaram a dar-lhe a sopa com seringas para a conseguir engolir.
Usou um
artefacto feito com duas tábuas para corrigir o desvio da coluna originado pelos
anos em que caminhou meio dobrado.
Juan Luis
Gálvez que ainda estudava para padre em Madrid decidiu ajudá-lo, ensinando-o a
falar melhor.
Quando levaram
Marcos pela primeira vez a uma barbearia, assustou-se ao ver o barbeiro aproximar-se
com uma navalha na mão e, pensando que iria cortar-lhe a garganta, deu um
grito e agarrou-se ao barbeiro, lutando com ele, sendo necessária a intervenção
da Guarda Civil que o algemou, até se acalmar, ao reparar numa criança a quem
lhe estavam simplesmente a cortar o cabelo
Mais tarde teve de alugar um apartamento e segundo informações de quem
lá entrou, não tinha móveis e apenas mantas e folhas amarrotadas de jornais e
revistas espalhadas pelo chão e era assim que dormia por achar que na cama se
dormia pior.
Procurava trabalho e, quando conseguia, era em situações precárias e muitas vezes sem receber pagamento.
Acabou por viver em condições de extrema miséria em Málaga, até que Manuel Rodriguez Barandela, um policia aposentado, o levou para sua casa em Rante, pequena aldeia pertencente ao município de São Cibrao das Viñas - Orense, onde vive até hoje.
Encontrou Marcos que na
altura procurava trabalho na hotelaria em Palma de Mallorca e esteve com ele
durante 5 meses (de 4 de Novembro de 1975 a 2 de Abril de 1976) gravando a sua
história diariamente e repetidas vezes, procurando falhas no relato que indiciassem ser uma
história falsa. Pelo contrário. Ficou convencido da sua autenticidade.
Quis conhecer os lugares da serra onde Marcos tinha vivido e por isso visitaram a gruta onde se abrigara,
… o rio onde brincara e pescara
... e foi com enorme entusiasmo que Marcos explicava como caçava coelhos e perdizes
Caminhava e ia imitando os sons de diversos animais: da perdiz macho, da perdiz fêmea, dos veados, dos lobos. Com uma folha na boca imitava o grito da águia e, de vez em quando, construía flautas com pequenos troncos e improvisava melodias simples.
Ao fim de um ano, com a pesquisa de detectives e também com a ajuda do antropólogo, acabou por localizar Marcos em Orense e pôde finalmente conhecê-lo, ouvir as suas histórias, ver os locais onde elas tinham ocorrido.
O relacionamento com Marcos foi tão simples, de uma ingenuidade quase infantil que se criou entre os dois uma grande amizade que persiste ainda hoje.
No texto abaixo deixamos o próprio Marcos contar algumas das suas histórias, pedindo desculpa por uma ou outra deficiência na tradução.
Andou muito
tempo numa cadeira de rodas até lhe sararem os pés, depois de lhe terem cortado
os enormes calos.
Obrigaram-no a fazer a primeira comunhão e também o serviço
militar. Felizmente o coronel percebeu que o quartel não era local para manter
uma pessoa acabada de sair duma situação como a dele e dispensou-o.
A sua inserção na sociedade foi muito problemática, cheia de
conflitos, enganos, desprezo, escárnio, maus-tratos, exploração, agressões, aproveitando
o facto de Marcos desconhecer as regras da sociedade e até o valor do dinheiro.
Era uma pessoa muito frágil que vivia como um ser estranho ao
mundo e à realidade social, já que na natureza tudo se cumpria de um modo
rígido e de mais fácil compreensão para ele
Procurava trabalho e, quando conseguia, era em situações precárias e muitas vezes sem receber pagamento.
Acabou por viver em condições de extrema miséria em Málaga, até que Manuel Rodriguez Barandela, um policia aposentado, o levou para sua casa em Rante, pequena aldeia pertencente ao município de São Cibrao das Viñas - Orense, onde vive até hoje.
Segundo
Barandela, arrependeu-se várias vezes deste gesto, por ter sido muito
difícil conviver com Marcos. Mas com o tempo, muita paciência e muito carinho, conseguiu
que Marcos se tornasse mais sociável, dando origem a fortes laços de amizade
entre os dois.
Barandela
faleceu em Abril de 2011 com 73 anos.
Tem um piano
em casa que Marcos aprendeu a tocar de ouvido.
Aposentou-se
mais cedo devido a um acidente de trabalho na construção civil, mas sempre que pode
dá uma ajuda no bar da aldeia, onde é considerado uma pessoa muito boa, um
pouco infantil, mas um menino muito bom.
Gabriel Janer Manila, que
hoje é catedrático de antropologia da Educação na Universidade das Ilhas Baleares,
interessou-se por este caso e resolveu fazer a sua tese de doutoramento baseada
nesta história, comparando-a com outros casos de crianças adoptadas por animais
e nos problemas decorrentes da sua inserção social.
Mais de 30 anos depois, adaptou
a sua tese a uma novela, dando-lhe o título de “He jugado con lobos”.
Quis conhecer os lugares da serra onde Marcos tinha vivido e por isso visitaram a gruta onde se abrigara,
… o rio onde brincara e pescara
... e foi com enorme entusiasmo que Marcos explicava como caçava coelhos e perdizes
... para que serviam as várias plantas
Caminhava e ia imitando os sons de diversos animais: da perdiz macho, da perdiz fêmea, dos veados, dos lobos. Com uma folha na boca imitava o grito da águia e, de vez em quando, construía flautas com pequenos troncos e improvisava melodias simples.
Manila elaborou a sua tese mostrando as diferenças deste caso para os outros conhecidos, como o facto do seu abandono ter sido deliberado e produto de um contexto sócio-económico de pobreza extrema e da sua sobrevivência só ter sido possível devido ás destrezas básicas adquiridas antes do abandono, à aprendizagem feita com o velho pastor, à sua extraordinária inteligência natural.
Ao reflectir sobre o discurso de Marcos, percebe que a aprendizagem posterior que fez na aldeia, na cidade, no quartel, no asilo, no mundo do trabalho, a nova linguagem unida ao pensamento vão codificar a sua experiência anterior, despertando saudade por aquela vida solitária e idealizando-a como um período em que não tinha problemas e era feliz. Por isso cita Ernst Cassirer, inspirado em Bergson, que a memória humana nada mais é que uma ressurreição do passado que implica um processo construtivo e criador.
Marcos é um excelente contador de histórias e em muitas delas existe uma relação de amizade muito forte entre ele e animais da floresta como os lobos, as águias, as raposas, os ratos, as cobras, animais que o acompanharam para o proteger, que o ajudaram nos momentos difíceis, e que se sentiram felizes e lhe sorriram quando ele os ajudou também.
Segundo o antropólogo, não serão histórias inventadas mas sim enriquecidas pela imaginação de quem entende desta forma a relação entre eles, principalmente pela necessidade de se sentir querido por alguém. E terá sido esta imaginação a sua melhor arma para a sobrevivência.
Marcos é uma pessoa divertida, de riso fácil e consegue transformar uma história trágica numa cómica, fazendo arrancar gargalhadas.
A maneira de se movimentar e a maneira como fala, mostra como todos aqueles anos o mudaram para sempre. Por vezes fica sem saber o que dizer, ouvindo apenas uma série de ruídos. Não consegue entender os pensamentos abstractos. E, se tiver confiança com o interlocutor, dirá que não está a perceber nada do que lhe está a dizer e que está a ouvir, só por ouvir
Passados uns 25 anos, o cineasta Gerardo Olivares leu casualmente a tese de Gabriel Janer Manila e ficou obcecado com a história de Marcos. A ideia de fazer um filme não lhe saía da cabeça, mas para isso precisava de o encontrar, de falar pessoalmente com ele.
Ao fim de um ano, com a pesquisa de detectives e também com a ajuda do antropólogo, acabou por localizar Marcos em Orense e pôde finalmente conhecê-lo, ouvir as suas histórias, ver os locais onde elas tinham ocorrido.
O relacionamento com Marcos foi tão simples, de uma ingenuidade quase infantil que se criou entre os dois uma grande amizade que persiste ainda hoje.
Para as filmagens precisaram de uma alcateia de 5 animais que vivia no Centro de la Cañada Real (Peralejo, Madrid) e foram surpreendidos pela empatia quase imediata que aconteceu entre Marcos e os lobos, em que estes o rodearam, cheiraram-no, saltaram para cima, esfregando-se no seu corpo e Marcos abraçando-os, deixando-se cair no chão com eles e beijando-os.
O biólogo do Centro, Pepe España espantado com a reacção dos lobos, principalmente por ser a primeira vez que viam Marcos, explicou depois que esta ligação entre eles, teria a ver com a posição de submissão que Marcos adoptara. Não era uma postura permissiva, mas sim de quem conhece as regras e as aceita.
Olivares convidou o actor Juan José Ballesta para o papel de Marcos e em 2010, depois de 5 anos de gravações, conseguiu estrear o filme com o título “Entrelobos”, mas não resistiu a apresentar o próprio Marcos no final do filme
https://www.youtube.com/watch?v=038b-zCAOCg
Ao fim de 60 anos, Marcos tornou a visitar Añora, sua terra natal e esteve com a sua tia Anastasia que lhe mostrou a sua casa e lhe falou da sua família, num encontro muito comovedor.
No texto abaixo deixamos o próprio Marcos contar algumas das suas histórias, pedindo desculpa por uma ou outra deficiência na tradução.