2017-10-20

Reflectindo sobre o incêndio de Outubro de 2017

Passados estes dias já pudemos caminhar pela nossa quinta, de máquina em punho, para registarmos os efeitos do incêndio que também nos atingiu, ainda que ligeiramente.

Não o fizemos durante a noite do incêndio porque não é possível estar a lutar contra o fogo e fazer reportagem fotográfica. Os braços são precisos e a atenção não pode estar dividida entre o melhor ângulo para fotografar e as zonas que é preciso atacar de imediato.

Há cerca de uma dezena de anos atrás e após um incêndio devastador (o segundo desde que aqui vivemos), publicámos neste blogue um texto extremamente sofrido tentando descrever o que se viu e o que se sentiu nessa altura. 

Mas nesses dois incêndios tivemos, no primeiro a ajuda dos bombeiros e populares e no segundo só a ajuda dos populares, que com uma decisão estampada nos olhos, com os rostos escondidos por panos e munidos de enxadas, machados e ramas de árvores, faziam frente àquela montanha de fogo que se erguia urrando e chispando fogo como se de um animal mitológico se tratasse.

Como citadinos que éramos e sem nunca ter estado perto de uma cena dantesca daquelas, recebemos uma lição de como os vizinhos se podem dedicar a uma ajuda extrema, correndo risco da própria vida. Ficámos tão impressionados que publicámos um agradecimento, no jornal da terra, a todos aqueles que aqui estiveram, pela impossibilidade de o fazermos pessoalmente, uma vez que ninguém se deu a conhecer. Entraram de caras tapadas para protecção do fogo e assim saíram quando já não havia perigo de maior.

A partir daí, foi nossa preocupação constante procurar formas de prevenção para a possibilidade de futuros incêndios. Por isso comprámos mangueiras idênticas às que os bombeiros usam e que no início do Verão, colocamos estrategicamente ao longo da quinta, nos locais onde temos furos de captação e bombagem de água.

Além disso, e também muito importante, contratamos pessoal para todos os anos fazer uma limpeza geral ás ervas e mato que nasce nos terrenos e, junto à vedação, também limpamos cerca de cinco metros do lado de fora da quinta nos terrenos de outros proprietários que nada limpam e que nem sequer conhecemos.

Entretanto fomos substituindo aos poucos, como forma de protecção, as arvores mais combustíveis como os eucaliptos e alguns pinheiros, por carvalhos, sobreiros e medronheiros que nascem espontaneamente por todo o lado, tendo o cuidado de periodicamente cortar os ramos baixos das arvores para aumentar a distância entre o chão e a copa.

Mas, embora preocupados com o calor que se tem sentido nesta altura, na verdade não esperávamos uma tragédia desta dimensão.

Os fogos que se viam distantes, aproximavam-se de uma forma alucinante, empurrados por um vento fortíssimo.

O medo instalou-se entre nós ao ficarmos sem electricidade e por isso sem podermos aceder á água dos furos e limitados a uma mangueira, perto da casa, ligada à água da rede.

Sabendo que os nossos filhos que estavam em Lisboa, se tinham metido nos carros para nos tentarem ajudar e estando a maior parte das estradas cortadas pelos imensos incêndios que devastavam a zona centro, ficámos numa angústia extrema por também termos ficado sem ligações telefónicas e por isso sem possibilidade de qualquer contacto.

No escuro da noite, víamos a alguma distância enormes clarões vermelhos e ficámos imobilizados à espera do que iria acontecer até que, parecendo vir do nada, uma coluna de fogo levantou-se à nossa frente estalando e chispando fogo pelas ventas.

O vento que acompanhava o fogo era de tal maneira violento que empurrava aquela tocha monumental junto à vedação, não a deixando espalhar-se para cima do nosso curral e parte social. Os vizinhos que sempre nos ajudaram, lutavam desta vez pelas suas próprias casas e até pelas vidas dos seus familiares e animais.

Não é possível descrever o que se sente quando se vê um mar de chamas em nosso redor, quando se quer ajudar os vizinhos cujos gritos lancinantes chegavam até nós meio abafados pelo fumo e o crepitar violento das chamas, a sentir  falta de oxigénio para respirar, com os olhos chorosos e meio cegos pelo fumo, correr com os pés queimados pela ausência das solas derretidas pelo chão em brasa, sentir um calor extremo que mesmo sem fogo pode incendiar o que for combustível.

E, de repente, o fogo segue noutra direcção, poupa-nos para ir devastar outra zona, outras gentes, deixando na sua passagem um rasto baixo de chamas.

Os vizinhos mais próximos conseguiram sobreviver e salvar as casas e animais.

E então começa o trabalho de rescaldo, procurando apagar as zonas que ficaram em chamas. Eu e o meu marido, sozinhos, passámos o resto da noite e toda a madrugada a carregar baldes de água das tinas que preventivamente tínhamos enchido nos meses quentes de verão, e, caminhando sobre as brasas, vertíamos aquela pouca água nas zonas mais perigosas.

Só de manhã é que os nossos filhos conseguiram chegar, ainda a tempo de, em conjunto com alguns vizinhos, controlar uma frente de incêndio que ainda se apresentava muito perigosa, por se estar a aproximar de uma zona ainda não ardida mas que depois de várias tentativas conseguiram neutralizá-la.

As fotos que tirámos hoje mostram no entanto, que uma zona limpa, caso o fogo não fique a moer com ventos que mudem a direcção constantemente, é uma boa forma para poupar as nossas árvores.

Nas fotos abaixo pode ver-se a nossa vedação, a faixa limpa por dentro e os tais cinco metros do lado de fora. É patente a diferença entre as nossas árvores e o eucaliptal queimado do vizinho.


Não somos defensores da limpeza de todas as matas (completamente impossível de concretizar).
As pessoas esquecem-se que a Natureza vive da biodiversidade e com um chão limpo não permitimos a sobrevivência de centenas de espécies animais. Por isso, temos uma zona onde não mexemos, deixando que o mato cresça à vontade e sem stress. É curioso que o fogo reconheceu esse espaço e atacou-o violentamente como mostra a foto seguinte. Mas isto não quer dizer que agora somos a favor da limpeza total das matas. Nada disso! O que defendemos é que ao criar uma zona com estas características, tem que se ter o cuidado de lhe proporcionar um fácil acesso para se poder actuar com segurança em caso de incêndio, como o caso dos corta-fogos que há anos atrás era frequente ver-se nas nossas serras com matas.


Quando visitamos vizinhos e amigos nas freguesias de Treixedo, Vila Pouca, S. Joaninho, Couto do Mosteiro e tantas outras, ficamos sem palavras. Pessoas que perderam a vida. Pessoas que estão hospitalizadas entre a vida e a morte. Pessoas que ficaram sem casa. Pessoas que ficaram sem oficinas, máquinas, tractores e alfaias agrícolas, impedidas de continuar a trabalhar. Pessoas que ficaram sem os animais que eram o seu sustento. E choramos com eles.

Que fazer agora para ajudar esta gente? Como dar a mão para se erguerem de novo?

A comunidade tem que se reunir, pensar em formas rápidas de ajuda, independentemente de esperar apoio do Governo e de instituições que têm essa responsabilidade mas que no fundo não conseguem ter a confiança da população pela inoperância visível ao longo de dezenas de anos.