2009-04-30

Perdendo pedaços de mim...

Foi com estupefacção que tive conhecimento da tua morte através do curto mail enviado pela tua companheira que nunca conheci. Ficava assim esclarecido o teu silêncio nestes últimos meses, a falta de resposta aos meus telefonemas, a ausência das palavras amigas no dia do meu aniversário.

Fechei os olhos e as recordações foram emergindo...

A primeira vez que nos vimos foi num treino de judo em Almada. Eras iniciado e o mestre escolheu-me para tua parceira avisando-me para começar no chão. Ensinei-te a posição do Hon-kesa-gatame. Deitaste-te de barriga para cima e eu sentei-me ao lado com as costas juntas ao teu corpo, pernas afastadas à frente, passei o meu braço em volta do teu pescoço, encostei a minha cabeça à tua e disse-te: - Agora vê se sais daí! E tu esperneavas, tentavas virar-te, davas esticões com o corpo e não conseguias sair da imobilização. De repente tive a ideia de te surpreender com um nami-juji-jime. Deslizando sobre ti, sentei-me sobre o teu tronco, de joelhos no chão e apertando-te com as coxas meti as mãos no gola do teu quimono, apertei de forma a bloquear ligeiramente as carótidas e disse-te: - Agora não vais conseguir sair daí. Bate com a mão no chão! E tu com voz sumida: - Para quê? -Para dizeres que desistes! -Não desisto! Mas que bruta!! E eu apertei um pouco mais: -Bate!! - Não bato!! E o grito do mestre: Soremade!! Larguei-te logo. O mestre a correr para nós: - Mas que disparate é esse, ó Ana?!! Nunca senti o tal espírito de judoca que o mestre apregoava e não gostava de estar a ensinar novatos. Mas mais tarde quando o mestre gritava “Randori!” e os novatos podiam escolher os graduados com que queriam lutar, quando levantava os olhos depois de ter ajeitado o quimono e o cinto, já sabia que te ia ter à minha frente de sorriso espalhado no rosto, fazendo a saudação e caminhando decidido para mim dando início ao combate e não permitindo a repetição daquele primeiro dia.

... a pulseira em aço batido, feita por ti e que usei durante anos para te manter junto a mim...

No alto das escarpas da Fonte da Telha, deitados sobre as ervas secas, observávamos as nuvens que deslizavam suavemente fundindo-se umas nas outras. - Aquela ali é um cavalo! – dizias tu de dedo espetado para o céu - Está a transformar-se... olha agora é um barco... estás a ver? E eu acenava que sim -E agora... espera... espera... ah, agora é um pássaro, viste? - E que pássaro? –perguntava eu - Deixa-me ver bem... é um tentilhão! E soltávamos gargalhadas adolescentes que voavam ligeiras em direcção ao mar -Diz-me mais nomes de pássaros… - Milheiras…. felosas… piscos… cachapins…. sabes que passarinho é este que está a cantar? - Um melro! - Oh não! Ainda não aprendeu a reconhecer o rouxinol? E de novo as gargalhadas esvoaçavam sobre nós até se sumirem levadas pela brisa

... as pardelhas que procuravas só para me fazer feliz...

Teste de tuberculina positivo. O médico ligou o radioscópio e quis que eu visse a sombra que se espalhava sobre o teu pulmão. Depois de um abraço carregado de medos, partiste para as terras quentes do teu Alentejo, donde regressaste depois de uma eternidade, mais forte... mais homem

... o pequeno tear que construíste para eu aprender a tecer com junco...

Numa manhã fria e chuvosa, aguardavas a minha passagem meio escondido debaixo de um toldo escuro. O cabelo desgrenhado e a barba escura no teu rosto gelado de lábios arroxeados eram estranhos aos olhos incendiados pela alegria de me ver aparecer. O teu corpo tremia e receei que desmaiasses ali, sem saber o que sentias e o que pretendias. Sentámo-nos à mesa de uma pastelaria e pedimos bebidas quentes. Não disseste nada e eu também não. Pegaste nas minhas mãos e depuseste um beijo morno. Levantaste-te e partiste

...os cestos miniatura que concebias para eu aprender cestaria...

Os teus olhos baixaram comovidos sobre a mesa quando coloquei no teu pulso a minha velha pulseira de prata. Ao nosso lado, a empregada varria o chão atirando para a frente beatas, pacotinhos de açúcar, guardanapos, caricas… - É para usar sempre? - perguntaste. E o rosto iluminou-se com o teu sorriso lindo quando te disse que sim

...os órfãos ouricinhos cacheiros para eu acabar de criar...

Parados no cais com os olhos afundados no Tejo, disseste: - Gostava de fazer uma viagem no meu barco, sem tempo, nem destino. Queres vir comigo? Só os dois? Fixei os teus olhos fundos que se prenderam nos meus numa carícia entristecida e senti no teu abraço quente, um pedido de desculpa.

... a tua insistência para eu reparar na beleza das flores minúsculas que espreitavam dos prados...

Estendidos sobre a relva, olhávamos para uma joaninha que hesitava caminhar sobre a tua mão ou a minha. Preferiu a tua e acelerada trepou o dedo que mantinhas espetado. Com as cabeças juntas cantarolámos baixinho: - Joaninha, avoa.. avoa… E ela abrindo as asas partiu esvoacejando, tal como tu fizeste recentemente levando contigo uma parte de mim que nunca mais irei recuperar.

Post Scriptum: Em Outubro de 2006 num texto que publiquei aqui com o nome “As saudades de um amigo”, terminaste deste modo o teu comentário “Ainda assim tomara que alguém escreva um texto tão bonito quando eu morrer como o que escreveste sobre o Thor”

Sinto uma tristeza imensa por não ter conseguido escrever à altura do que mereces, Fernando. Mas deixo aqui expresso o enorme carinho que sempre senti por ti e o desgosto desmedido por teres partido definitivamente da minha vida, apenas suavizado por tão doces recordações

38 comentários:

João Roque disse...

Ana
sei o que sentes!!!!
É tão belo o teu texto, cheio de doces recordações: e afinal sempre escreveste as belas palavras que o Fernando te pediu.
Beijinho amigo.

Ezequiel Coelho disse...

É uma sensação tão dolorosa...

Balsâmicas foram para ele as tuas palavras. Ele sabia-o melhor do que tu e essa seria (mais) uma das razões porque tinham uma relação de amizade tão especial.

Não existe a medida certa. Às vezes fazemos demais, outras vezes fazemos de menos.

Um enorme abraço e um beijo,
com uma enorme admiração por ti!

a d´almeida nunes disse...

Que belo e sentimental texto de evocação duma amizade tão foi a vossa, Ana!
O Fernando decerto que vai ficar mais tranquilo por saber que não o esqueceste, que não ficaste indiferente ao seu desaparecimento.
A saudade deve andar por aí.
Só o tempo a poderá atenuar!...
Um beijo
António

Joaquim Nogueira disse...

A AMIZADE É UMA ALMA SÓ COM DOIS CORPOS (Aristóteles)

Oris disse...

O Fernando, lá onde estiver, vai ler com emoção as palavras que aqui lhe deixaste.

Como é bom termos amigos assim...

Beijitos, Ana.

Duarte disse...

Como emerge a primavera! Pode que até com mais força: uma boa amizade sente-se.
Os momentos criam as palavras e tu, levada pela emoção, acabas de dar-me uma grande lição de amizade.
Essas flores que tão bem elegeste marcam o caminho pelo qual andastes e o reviver enriquece a pessoa. Que grande que és!
Que texto! Que beleza na palavra sentida, expressão dum amor fraternal no limite...
Ana, como dói o silencio da ausência!
Deixo-te um grande abraço de admiração, és imensa!

Chanesco disse...

Minha cara Ana

Este texto é um hino à sensibilidade, à amizade, à vida.
Seja lá para onde for que tenha partido, esta "carta" será recebida e não ficará sem resposta.

Um abraço

A OUTRA disse...

Ana:
Sofremos muito quando perdemos um amigo verdadeiro!
No entanto eu acredito que não ficamos sós, pois as recordações permanecem e e portanto não ficaremos sós.
Abraço
Maria

Tongzhi disse...

Apenas 1 beijo para ti

Ricardo disse...

No lugar de palavras, deixo aqui um abraço apertado, na vã tentativa de compensar um pouco essa tristeza.

Duarte disse...

Só agora vi a tua mensagem, o que muito agradeço. O único blog que uso a diário é o de amigos de Portugal, nos demais só colaboro, ainda que sou o que mais trabalha.

Segue impressionando-me o teu texto, é um grito desesperado de impotência...! Um desgarro.

Contemplo as flores para atenuar as penas, que bonitas!

Um abraço na pena

Anónimo disse...

Que história tão linda, duma amizade tão antiga e tão maravilhosa !
Foi muito saboroso acampanhar esta sua crónica, e com tantos pormenores !
Ainda bem que a teve e tão intensa, que lhe ficará gravada para o sempre.

Mário de Portugal

Maria Cristina Amorim disse...

Um beijo para ti minha amiga.

maria disse...

Mais palavras para quê? Partiu, é difícil aceitar mas é assim. Fica nas tuas lembranças.
Saudações

C. Cardoso disse...

A paixão dos sentidos, é um blog ao qual me habituei a visitar e a "seguir". Gosto de cá vir, como se este cantinho fosse a de uma boa vizinha, aquela a quem gostaria de pedir um raminho de salsa...
A tua dor Ana, que tão admirávelmente a tornaste homenagem, ao teu querido amigo, essa dor, essa perda, pouco ou nada poderemos fazer, somente exprimir nestas linhas um abraço virtual de solidariedade na tua dor.
UM ABRAÇO AMIGO.

Espaço do João disse...

Querida Ana.
A verdadeira amizade, não tem limites. É verdade que não choremos sobre o leite derramado mas... quando a amizade é mesmo amizade, nada nos impede de não chorar-mos.A dor atormenta-nos a cada passo e, nós sem poder fazermos nada para a colmatar. Eu sei bem o que é perder um amigo e, o teu texto diz tudo.Teu coração não está empedernido, ele está sangrando e, demostra bem quem és. Palavras? De que servem? Fiquemos com a recordação pois só ela nos resta. Recebe um beijo no fundo do teu grande coração.

Anónimo disse...

Olá Ana,
andei por aqui e encontrei as bonitas flores que vais partilhando
bem hajas
beijinho e obrigada
PS-já temos mail lá
desculpa a demora

bettips disse...

Um amizade de conluios amigos, flores, sentimentos. Que perda a tua, Ana, assim traduzida no pulsar que se sente deste lado.
Um beijo

poetaeusou . . . disse...

*
só tu, amiga,
nos podes transmitir
a verdadeira e pura,
Paixão dos Sentidos,
,
O Fernando não partiu
da tua vida,
partiu, sim, para o lado
misterioso da vida,
e está com quem, nele pensa . . .
,
esboça, de quando em vez,
um sorriso a ele dedicado, e
prestarás a mais pura homenagem,
,
serenas conchinhas de paz, deixo,
,
*

Madrigal disse...

Almada, o Judo, o Mestre Barata e os seus dois filhos gémeos, na pequena sala do Externato Frei Luís de Sousa, tudo isso faz parte do acervo das mais tenras recordações da minha infância.

Almada é parte daquilo que eu fui, daquilo que eu sou e onde ainda mora a minha melhor amiga: a minha mãe.

Fiquei muito sensibilizado com as tuas palavras e amei ler-te.

Voltarei.

Um abraço de amizade

Jorge

Rubi disse...

Que descanse em paz!

Bichodeconta disse...

Penitencio-me pela minha ausencia! Sempre que volto há algo que me prende, infelizmente nem sempre as razões são as melhores..Magnifico texto, Poético ,de uma sensibilidade de colibri.. Olhos marejados, tal a emoção das palavras.Perder alguém que nos é tão querido, faz com que parte de nós se vá também..Esta magnifica forma de escrever deixa-me sempre com vontade de voltar, infelizmente o tempo ou qualquer outra circunstãncia nem sempre o permitem.Deixo um beijinho e desejo bom final de semana..

Manuel Anastácio disse...

Uma homenagem linda, que só almas grandes poderão merecer, tanto pelo texto como pelas fotografias que o acompanham. Não é um elogio fúnebre, é uma celebração da vida.

Orlando disse...

Ana:
Continuo a aguardar os teus comentários e textos, que nos dão uma boa visão da vida.
E como essa visão faz falta!...

Com muita admiração
Orlando

Bichodeconta disse...

Passei para deixar um beijinho e para ver se a primavera já estava a florir no teu coração triste e magoado.Voltarei..

FERNANDINHA & POEMAS disse...

QUERIDA ANA, COM O MEU CORAÇÃO TRISTE, DEIXO-TE UM GRANDE ABRAÇO DE CONFORTO E AMIZADE,
FERNANDINHA

Maria disse...

Os sonhos, as recordações, as vivências, tudo isto envolto num imenso carinho e tristeza foi o que transmitiste através destas belíssimas palavras.
Um beijo muito grande para ti.

A OUTRA disse...

Então Ana... vim ver se havia novidades de si e vejo que parou!
Tudo tem de continuar e p seu blogue transmite uma grande força.
Quero ver novidades quando cá voltar, por favor.
Bom fim de semana
Maria

pin gente disse...

e as recordações não podiam ser mais doces... tanta ternura, ana!
deixo-te um beijo
luísa

João Navarro disse...

Olá Mãe,
Passei finalmente por aqui e vi o teu texto do/para o Fernando.
Fica um beijinho.

Joba disse...

Acompanho este blog pelo amor à terra, aos cheiros, às "estórias" cheias de emoção que a Ana nos conta. Nem sempre felizes, mas reais. Sinto-me orfão com este blog de luto. Prefiro pensar num repouso vegetativo que uma Primavera qualquer,fará de novo germinar. Obrigado Ana pela magia das Palavras.Esperamos pacientemente que a paixão dos sentidos, se faça de novo sentir...

Oris disse...

Então, Ana...Já temos saudades dos teus textos. Vamos, conta-nos lá as novidades da quinta.

Queremos voltar a ler-te depressa...

:))

Beijitos

Bichodeconta disse...

Passo para matar saudades e aproveito para deixar um abraço de ternura e agradecimento pelos bons momentos de leitura proporcionados.. Bom final de semana, um beijinho.

Quico disse...

Que belo percurso tu arranjaste para, mais uma vez, levares o Fernando a caminhar a teu lado, entre as flores!

Que melhor o Fernando podia querer que ler essa mensagem para ele e para nós?

Aposto que ele continua com o sorriso aberto a olhar-te todos os dias com a tua mensagem dobradinha no bolso da eternidade e observando essas flores.
Vês? Como diz o Ventor, a nossa vida é cheia de grandes amizades inesquecívei.
Beijinhos do Quico e do Ventor

A OUTRA disse...

Ana:
Peço, por favor, mais publicações.
Um abraço grande
Maria

--> Margarida disse...

A amizade é como a saúde: Nunca nos damos conta de seu verdadeiro valor até que a perdemos.

Duarte disse...

Ana, imagino que uma pancada assim dói muito, mas também é certo que quero seguir desfrutando com esses relatos que tão bem crias. Anima-te que tudo isso é o que nos faz viver, sentir que podemos fazer coisas. Transmitir as nossas vivências e dando amor.

Desejo que sejas imensamente feliz, sempre.

Recebe todo o meu afecto num forte abraço

jnavarro disse...

Voltei a ler...

É triste... mas simultaneamente uma bonita homenagem.

Beijo daqui para aí